Forma e Violencia Juridica na Acumulacao Capitalista: sobre relacoes de troca e expropriacao/Legal Form and Legal Violence of the Capitalist Accumulation: On the Exchange and Expropriation Relations.

AutorGoncalves, Guilherme Leite

Introducao (1)

Em comparacao com a revolucao francesa ou russa, a revolucao mexicana e muito menos festejada. Produziu, no entanto, conquistas fundamentais. Dentre elas, a constituicao de 1917, absolutamente precursora no que se refere a previsao do conceito juridico da "propriedade social". Elaborada em meio a agitacao da guerra civil e sob pressao de forcas revolucionarias, tal constituicao definiu, em seu Artigo 27, que o solo mexicano deveria ser um bem publico, o qual ate poderia ser outorgado a proprietarios privados, mas apenas na forma de concessoes revogaveis conforme o cumprimento de sua funcao social. Isto garantiu que as comunidades tradicionais gozassem do direito de reivindicar a terra. Foi a primeira vez que um Estado moderno reconheceu o sistema de propriedades rurais de uso coletivo, os ejidos e comunidades, e, com isso, aceitou as formas colaborativas de agricultura dos camponeses e dos povos indigenas. Para a vertente social-revolucionaria da insurreicao mexicana, liderada por Emiliano Zapata, esta conquista foi um exito sem precedentes, que conseguiu, por decadas, retirar e proteger o estilo de vida e a existencia das comunidades rurais mexicanas do controle, em especial, do agronegocio dos EUA.

O original e subversivo Artigo 27 experimentou seu fim com o inicio da decada de 1990. Para aderir ao North American Free Trade Agreement (NAFTA), o governo mexicano foi submetido as chamadas "medidas de ajuste estrutural" recomendadas pelo Banco Mundial. Seu principal objetivo era abolir a primazia da propriedade nacional e coletiva das terras, tal como estabelecido no Artigo 27, e as garantias legais conexas aos ejidos e comunidades, substituindo-as pela desregulamentacao do direito fundiario. A Constituicao mexicana foi reformada no curso da implementacao destas medidas pelo governo neoliberal de Carlos Salinas de Gortari (1988-1994). Com isso, passou-se a permitir explicitamente a venda, aluguel, arrendamento, hipoteca e penhora das propriedades rurais coletivas, transformando gradativamente indigenas e camponeses autonomos em proprietarios "livres".

As condicoes desiguais e assimetricas do mercado agricola global em termos de poder, informacao, capital, distribuicao de riscos etc. levaram muitos camponeses a vender suas terras em condicoes muito desfavoraveis devido ao endividamento ou ao desconhecimento acerca de seu valor real. O risco da pauperizacao aumentou, forcando-os a imigrar ou a se tornar empregados dos novos proprietarios--conglomerados transnacionais que tem comprado e concentrado unidades rurais sob a forma de grandes latifundios voltados para a producao de biocombustiveis e alimentos em grande escala. Quando este processo comecou, os camponeses da regiao de Chiapas se mobilizaram macicamente. O levante do Ejercito Zapatista de Liberacion Nacional, que foi deflagrado em 1994, e resultado dessas mobilizacoes. Em resposta, o Estado mexicano aplicou diversas politicas de criminalizacao da pobreza e repressao contra os camponeses e movimentos politicos, o que levou, e continua a levar, a uma onda de detencoes e prisoes sob diversas acusacoes. (2)

Como este exemplo mostra claramente, os direitos e as constituicoes nao sao marginais, mas elementares para a afirmacao dos interesses do capital. Esta observacao tambem foi feita pelo jurista sovietico Evgeni Pachukanis (2003), que, em sua teoria da forma juridica, elaborou a conexao sistematica entre direito e valor. O modelo pachukaniano baseia-se no pressuposto de que as normas juridicas garantem as estruturas de desigualdade do capitalismo, na medida em que asseguram a forma de equivalencia das mercadorias em uma sociedade de produtores nao iguais. A partir disso, ele identificou um "carater fetichista do direito", analogo aquele da mercadoria que Marx (MEW 23: 85 ss.) havia formulado. (3) No caso do regime capitalista assalariado, o fetichismo juridico baseia-se na ficcao de uma relacao contratual simetrica entre dois proprietarios (de meios de producao e de forca de trabalho) formalmente independentes autonomos e iguais, que, no entanto, mascara as relacoes radicalmente assimetricas de poder e bens entre capitalista e trabalhador.

Porem, como sugere o caso da expropriacao da terra no Mexico, a analogia entre forma da mercadoria e forma juridica nao e de modo algum suficiente para caracterizar exaustivamente o funcionamento do direito. Em contextos em que a ficcao (tao real quanto relevante) de uma sociedade de individuos proprietarios nao se encontra realizada, tambem nao ha ficcao legal fetichizada de equivalencia ou igualdade. Em outras palavras: se o sistema do valor de troca tiver de ser estabelecido em espacos sociais ou mesmo em sociedades inteiras sem que ja existam condicoes previas necessarias para sua instauracao, entao o direito nao se manifesta de forma fetichizada, mas no estado bruto da violencia explicita, legitimando abertamente a repressao, a privatizacao e a supressao escancarada de todos os outros que se coloquem no caminho da expansao desse sistema. O exemplo acima mostra essa dinamica ao apresentar uma ordem legal que possibilitou a expropriacao dos ejidos e das comunidades e permitiu a tomada de terras por conglomerados agricolas atraves de um processo de privatizacao e criminalizacao manifestamente motivado politicamente.

Do que se trata tal violencia? Pode-se falar de um tipo de violencia juridica especificamente ligado a expansao capitalista? O objetivo do artigo e formular uma definicao da estrutura e papel do direito no contexto dos processos de expropriacao, em contraste com a teoria da forma juridica de Pachukanis, de sorte que ambas concepcoes possam, de maneira antagonica e combinada, construir um modelo de analise mais abrangente da totalidade do desenvolvimento socio-juridico do capitalismo. A premissa e a tese, amplamente discutida no debate sobre acumulacao primitiva, de que a dinamica capitalista nao e de modo algum reproduzida apenas no ambito da troca (institucionalizada) de equivalentes e da exploracao do trabalho assalariado, mas igualmente atraves de processos repetidos de expropriacoes, os quais inauguram por meio da forca o regime de apropriacao de excedentes. Reconheco, portanto, que do ponto de vista do principio da equivalencia, o direito surge sob a configuracao da forma e do fetichismo juridicos, tal como descrito por Pachukanis (2003). A meu ver, porem, esta visao, concebida em analogia a forma da mercadoria, nao capta a estrutura do direito em situacoes de tomada violenta do espaco em que o capitalismo mercantiliza setores e grupos anteriormente nao mercantilizados para criar e expandir as condicoes de existencia de seu modo de producao e garantir sua continuidade. Neste contexto, o direito surge como uma violencia juridica aberta e uma prescricao que sequer mascara a desigualdade.

Nos proximos topicos, farei, em primeiro lugar, uma breve descricao das teses da troca de equivalentes em Marx e da forma juridica em Pachukanis. Em seguida, reconstruirei a nocao de expropriacao capitalista, em conexao com o teorema marxiano da acumulacao primitiva, e demostrarei que tal dinamica se encontra entrelacada com o circuito das trocas. Depois apresento a definicao de violencia juridica explicita. Ao final, buscarei, brevemente, indicar uma potencia critica e emancipatoria das categorias discutidas como agenda a ser desenvolvida em pesquisas futuras.

  1. Trabalho, Troca de Equivalentes e Forma Juridica--Sobre a Posicao do Direito no Capitalismo por Pachukanis

    Em sua analise da mercadoria, Marx (MEW 23: 63 ss.) lanca mao de um conceito central: a forma da equivalencia. Tal forma implica a copresenca de dois proprietarios de diferentes produtos, que, obtidos direta ou indiretamente por seu trabalho, sao intercambiaveis entre si. (4) Atraves da comparacao no mercado, tais produtos recebem um valor de troca e sao mensurados, bem como integrados, conforme a grandeza virtual do "total de mercadorias" que e refletida na evolucao do preco (MEW 23: 51-52). Esta mensuracao torna-se fator de orientacao para situacoes subsequentes de troca. No entanto, aquilo que, a primeira vista, parece ser a descricao de um processo banal de permuta passa a ter consequencias imprevisiveis quando a "mercadoria" a ser intercambiavel e, na verdade, a forca de trabalho disponibilizada por uma das duas partes, que a oferece para a venda a outra (MEW 23: 181-184).

    Neste caso, a expressao equivalencia descreve o principio em que se baseia a troca, mas e igualmente enganadora, porque oculta a assimetria estrutural de classe entre capitalistas e trabalhadores (Fausto 1987: 292). A posicao entre ambos os polos e desde o inicio desigual; conforme se realiza a relacao de trabalho, tal desigualdade e aprofundada pela apropriacao de tempo de trabalho alheio excedente ao pagamento da contraprestacao salario (MEW 23: 321 ss.). Tal apropriacao--base da mais-valia--garante a reproducao do capital. Em contraste com as relacoes de dependencia de nomine desiguais--como a escravidao e a servidao--, a igualdade entre as trocas e assumida como obvia, um dado natural; isto, no entanto, apenas mascara condicoes assimetricas efetivas--e ao mesmo tempo dificulta sua investigacao.

    Assim, na medida em que a forma do vinculo horizontal sugerida pelo contrato de trabalho e tomada ao pe da letra, o seu carater material e ignorado. O fato de nao haver desigualdade...

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