Fora de cena: a loucura, o obsceno e o senso comum

AutorAngel Martínez-Hernáez
CargoDoutor em Antropologia pela Universidade de Barcelona, Espanha. Professor Titular de Antropologia da Universitat Rovira i Virgili, Espanha
Páginas1-19
http://dx.doi.org/10.5007/1807-1384.2012v9n2p01
FORA DE CENA: A LOUCURA, O OBSCENO E O SENSO COMUM
1
OFFSTAGE: MADNESS, THE OBSCENE, AND COMMON SENSE
FUERA DE ESCENA: LA LOCURA, LO OBSCENO Y EL SENTIDO COMÚN
Angel Martínez-Hernáez2
Resumo:
Na história europeia, a loucura está associada com dois estados: o movimento e o
confinamento. Estes estados aparentemente contraditórios convergem em um
estado obsceno, no sentido etimológico da palavra: fora de cena. Neste artigo,
baseado em dados etnográficos na rede de saúde mental de Barcelona, argumenta-
se que o "estar obs-ceno" se produz quando a loucura desafia os processos sociais
hegemônicos de persuasão que induzem a aceitar padrões de comportamento
considerados adequados e a identificação dos pacientes com os interesses dos
terapeutas. A loucura não desafia a razão, como normalmente se diz, senão o senso
comum entendido como um sistema cultural. A natureza refratária da loucura conduz
a uma gestão estigmatizante nos sistemas especialistas que procuram incorporar a
experiência dos sujeitos afligidos em categorias nosológicas previsíveis.
Palavras-chave: Loucura. Obs-cenidade. Senso comum. Etnografia. Biopolítica.
Abstract:
Throughout European history, madness has been associated with two states:
movement and confinement. These apparently contradictory states converge in an
obscene state, in the etymological sense of the word: offstage. In this article, based
on data from ethnographic work in the Barcelona mental health care network, it is
argued that "being ob-scene" results when madness challenges hegemonic social
processes of inculcation and persuasion that induce acceptance of behavioral
patterns considered appropriate, and lead patients to identify with the interests of
therapists. Madness defies not reason, as it is widely supposed, but common sense
understood as a cultural system. Its refractory nature leads to the stigmatizing
management of madness in expert systems that seeks to subsume the experience of
affected persons in predictable nosological categories.
Keywords: Madness. Being ob-scene. Common sense. Ethnography. Biopolitics.
Resumen
1 Este texto toma como referência outros trabalhos anteriores (MARTÍNEZ-HERNÁEZ, 1998;
MARTÍNEZ-HERNÁEZ, 2000). Quero agradecer a C. Mendoza a leitura atenta deste texto.
2 Doutor em Antropologia pela Universidade de Barcelona, Espanha. Professor Titular de Antropologia
da Universitat Rovira i Virgili, Espanha. E-mail: angel.martinez@urv.cat
Esta obra foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição 3.0 Não
Adaptada.
2
En la historia de Europa, la locura ha estado asociada a dos estados: el tránsito y el
confinamiento. Aunque aparentemente antagónicos, estos dos estados conforman
un estar obsceno, entendiendo este término en su sentido etimológico de fuera de
escena. En este texto, y tomando como referencia los datos de nuestro trabajo
etnográfico en la red de salud mental de Barcelona, se argumenta que el “estar obs -
ceno” se deriva de la especial refracción de la locura con los procesos de
hegemonía, persuasión e inculcación que operan habitualmente en la vida social y,
en particular, con su refracción no a la razón, como generalmente se invoca, sino al
sentido común entendido como sistema cultural. Esta refracción es la que induce a
una gestión estigmatizante de la locura en los sistemas expertos que busca
subsumir la vivencia de los afectados en categorías nosológicas previsibles.
Palabras-clave: Locura. Obs-cenidad. Sentido común. Etnografía. Biopolítica.
INTRODUÇÃO
Na história de Europa e de seus processos civilizatórios (e colonizadores) a
loucura vem associada a duas práticas sociais: o trânsito e o confinamento. A
primeira destas práticas adquire uma de suas melhores representações no Quixote,
onde, como é sabido, o insensato se vê abocado a um trânsito contínuo, pois aquilo
que trata de atingir é tão próximo e ao mesmo tempo tão longínquo como a própria
fantasia. O confinamento, por sua vez, inclui entre outras modalidades o manicômio
como lugar de reclusão (não se sabe bem o quê) da sem-razão, do caos, da falta de
senso comum, da desordem, do medo, da diferença, da dissidência, mas que
persiste durante séculos como uma forma de controle social. Movimento e reclusão
constituem dois atributos aparentemente contraditórios que conformam um “estar
obsceno”, entendendo esta palavra no sentido etimológico de “fora de cena”.
Pensemos que enquanto o movimento se converte numa saída forçada ou voluntária
do jogo social, o confinamento não deixa de ser uma forma de anulação do direito à
cidadania dos afetados.
Como é de esperar, o laço que une movimento com reclusão é o mesmo que
vincula a loucura a um saber psiquiátrico que foi considerado “especial” nas suas
origens. A psiquiatria é um saber e uma prática sobre a alteridade, ainda que com o
tempo essa alteridade tenha sido diluída para constituir um território de estados de
anormalidade tão difuso como débil em sua formulação. Estados depressivos e
ansiosos, o suposto “risco” ou probabilidade de padecer um transtorno,
comportamentos incômodos associados ao jogo, a sexualidade, a agressividade ou
a interação social, o mal-estar próprio do ciclo da vida, estados como a perda leve
de memória, são situações, entre muitas outras, que com o tempo se converteram

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT