A 'consuetudo mercatorum' como fonte do Direito Comercial

AutorJosé Engrácia Antunes
Páginas7-22

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1. O problema

I - Numa época marcada pela globalização da economia, um dos aspectos mais marcantes da evolução do Direito Comercial do séc. XXI consiste na extraordinária expansão da matéria mercantil, traduzida no aumento quantitativo e qualitativo das actividades económicas que passaram a situar-se na órbita de regulação deste ramo jurídico - ou seja, aquilo que já alguém apelidou sugestivamente de verdadeiro big bang deste ramo jurídico.1

II - Semelhante fenómeno de expansão não poderia deixar incólume, naturalmente, o tradicional sistema das fontes jus-mercantis: a mais evidente das consequências consistiu num claro declínio da ideia de codificação do Direito Comercial em favor do protagonismo da legislação comercial extravagante.2

Por um lado, apesar de constituir o seu núcleo histórico fundamental, a verdade é que deixou de ser possível ver no Código Comercial a cúpula ordenadora do edifício do actual Direito Comercial.3 O

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caso português é bem ilustrativo disso mesmo: decano dos códigos vigentes no ordenamento jurídico nacional, aquele Código - que porventura já nasceu velho e atrasado mesmo relativamente às realidades económicas contemporâneas da sua promulgação4 - representa hoje, decorridos 120 anos sobre a sua entrada em vigor, pouco mais do que uma peça de museu.5

Por outro lado, a satisfação das necessidades regulatórias de uma miríade de actividades económicas sempre renovadas apenas se tornou possível graças a um verdadeiro "aluvião" de legislação comercial extravagante e avulsa, a qual, a breve trecho, se acabaria por tornar na massa normativa fundamental das ordens jurídico-comerciais contemporâneas.6 Com efeito, a enorme heterogeneidade das actividades económicas reguladas, mais do que simplesmente tornar obsoletos os paradigmas legais clássicos da codificação jusmercan-til (os conceitos de "acto de comércio" e "comerciante"), tornou pouco menos do que quimérica a possibilidade de reconduzir a regulação da matéria mercantil a um único corpo normativo, dotado de plenitude lógico-sistemática e alicerçado em critérios unitários.7

III - Apesar deste típico predomínio da lei no sistema das fontes do Direito Comercial moderno - iniciado com o movimento de codificação do séc. XIX e expo-nenciado com o aluvião regulatório jus-mercantil registado durante todo o séc. XX -, não se pode esquecer que os vulgarmente denominados "usos de comércio" (trade usages, Handelsbräuche, usages de com-merce, usi commerciali) conservam ainda hoje uma importância real que não pode ser menosprezada.8

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O objecto destas breves e despretensiosas reflexões é justamente o de analisar e determinar a relevância actual dos denominados "usos de comércio " como fonte do Direito Comercial. Para o efeito, a exposição subsequente arrancará da distinção clássica entre o costume mercantil (por vezes também conhecido como "usos mercantis de direito") e os meros usos mercantis (denominados, em contraposição, "usos mercantis de facto"): ao passo que, no último caso, apenas existe a observância generalizada e uniforme de um determinado padrão de conduta que se mantém exclusivamente em virtude da sua mera reiteração, no último caso, além desse elemento objectivo, existe ainda a convicção dos sujeitos intervenientes de que o seu acatamento é juridicamente obrigatório como se de uma norma legal geral e abstracta se tratasse.9

2. O costume mercantil

I - O costume mercantil, também conhecido por usos mercantis de direito (Handelsgewohnheitsrecht, usages de droit, consuetudini), vem sendo comummente definido como toda a prática social ou económica generalizada e constante no âmbito das relações comerciais, acompanhada da convicção de obrigatoriedade da norma que lhe corresponde .10

No entendimento tradicional, pois, o costume mercantil é assim constituído por dois elementos fundamentais: de um lado, o corpus ou elemento objectivo, consistente num determinado padrão de conduta uniforme (isto é, observado pela generalidade dos sujeitos jurídicos) e estável (isto é, que é permanente ou se prolonga minimamente no tempo); e, de outro lado, o animus ou elemento subjectivo, traduzido na convicção por parte dos sujeitos jurídicos de que se está diante de uma norma geral obrigatória (opinio juris vel necessita-tis). Ora - pergunta-se - será o costume mercantil uma fonte juscomercial autónoma?

II - Nos países cujos Códigos Comercial e até Civil omitiram uma referência genérica e expressa ao costume no plano das fontes do Direito, um sector significativo da doutrina propende para uma resposta negativa: tomando aqui emprestada a sugestiva imagem de Luís Cabral de Mon-cada, o costume seria "como um pobre planeta que só recebe a luz do Sol: a Lei".11 A

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questão, todavia, não pode ser resolvida com tamanha simplicidade.

Com efeito, e por um lado, convém recordar que o Direito Comercial germinou e vingou justamente com base nas práticas e regras costumeiras sedimentadas nas relações entre os comerciantes, regras essas que se foram progressivamente autonomizando para fazer face às insuficiências das normas escritas do direito civil comum, tendo-se conservado durante uma boa parte da sua milenar existência como um ramo jurídico de matriz consuetudiná-ria.12 Ora, se bem que de forma menos incisiva, a verdade é que este pedigree continua a manifestar-se activamente no âmbito da actual regulação da matéria mercantil, no plano interno e sobretudo internacional, mormente graças à flexibilidade regulató-ria da norma costumeira, a qual tem permitido, não raro, que a ordem jurídico-mer-cantil acompanhe a permanente e frenética mutação das relações económicas que é suposto regular: não constituirá decerto surpresa afirmar que a tipificação, senão legal, ao menos social, de muitas novas figuras contratuais (v.g., concessão comercial, cessão financeira, desconto bancário, crédito documentário, joint venture, etc.) ou mesmo novas modalidades de transacção (v.g., e-commerce), foi sendo originariamente suprida - e, nalguns casos, continua a sê-lo - por regras de formação espontânea ou auto-regulatória entre os agentes económicos envolvidos.13

Por um lado, vai ganhando consenso um pouco por todo o mundo a ideia segundo a qual lei e costume constituem fontes de juridicidade autónomas e dotadas de igual dignidade, impondo-se a validade de qualquer uma delas por si mesma e sem necessidade do reconhecimento pela outra14 - o que vale por dizer que, também no Direito Comercial, normas escritas (legais) e não escritas (costumeiras) se encontrariam em pé de igualdade. Essa ideia, de resto, é também corroborada no plano do direito comparado, já que são diversos os ordenamentos jurídicos estrangeiros onde, não obstante a inexistência de uma consagração legislativa expressa da sua relevância jurídica, o costume é aí tido pacificamente pelas respectivas doutrina e jurisprudência como fonte juscomercial, designadamente no direito francês - onde lhe é atribuído mesmo "um relevo capital no Di-

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reito Comercial"15 -, no direito alemão -onde a doutrina dominante também não lhe disputa a natureza de "categoria especial de fonte do Direito Comercial"16 -, e, sem especial surpresa (atento o relevo do precedente jurisprudencial), no próprio direito anglo-saxónico.1718

Assim sendo, e em suma, nada há, nem no sistema geral das fontes, nem nos princípios gerais, que obste à consideração do costume mercantil como verdadeira fonte autónoma do Direito Comercial.19

III - Uma vez assente que o costume se integra "de plano" no sistema das fontes jusmercantis, cabe agora indagar da sua relevância no quadro do Direito Comercial moderno.

Em abstracto, o costume mercantil, enquanto fonte imediata de normas jusco-merciais, possui uma dignidade (pelo menos) idêntica à da própria lei: ou seja, normas mercantis legais e normas mercantis consuetudinárias coexistem lado a lado, ambas constituindo modos de revelação do Direito Comercial objectivo. Essa coexistência pode assumir diversas formas e, dado a sua diferente origem (respectivamente, formal-voluntária e material-invo-luntária), pode nem sempre ser pacífica: assim, a norma consuetudinária pode coincidir com a norma legal, identificando-se totalmente os respectivos conteúdos (costume secundum legem), pode corroborar o sentido da norma legal mas ir para além dele, ampliando assim o seu alcance (costume praeter legem), ou pode até eventualmente contradizer a norma legal, opondo-se ou negando o conteúdo desta (costume contra legem).20

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Esta relevância abstracta não tem encontrado, todavia, uma verdadeira correspondência no mundo vivo e concreto do Direito Comercial dos nossos dias: de "fonte-rainha" ou primária no passado, a consuetudo mercatorum transmutou-se hoje numa fonte secundária, senão mesmo residual, deste ramo jurídico. Com efeito, o extraordinário desenvolvimento dos sistemas económicos contemporâneos, caracterizados pela sua complexidade, massifi-cação e globalização, trouxeram consigo um fenómeno, já atrás assinalado, de expansão da matéria e da regulação mercantil por via legal: ora, semelhante aluvião legislativo, a que é inerente uma vocação hegemónica de regulação das relações jusco-merciais, acabou por restringir os espaços de formação espontânea de regras consue-tudinárias, tornando assim difícil o surgimento do costume mercantil.21 A bem dizer, construído sobre a exigência tradicional da "convicção de obrigatoriedade" por parte dos seus destinatários, a norma con-suetudinária mercantil ficou condenada a despontar e sobreviver quase exclusivamente nas franjas ou orlas extremas do tráfico mercantil: ou no âmbito do pequeno comércio local - v.g., pense-se no costume de estabelecer uma prioridade cronológica na celebração dos contratos de compra e venda de bens ou serviços nos estabelecimentos comerciais de...

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