Elisão fiscal: limites na desconsideração de negócios jurídicos

AutorMaria Rita Ferragut
CargoMestre e Doutora em Direito Tributário pela PUC/SP. Professora dos Cursos de Pós-Graduação da FIA/USP, PUC/COGEAE e IBET. Advogada em São Paulo
Páginas59-70

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1. Introdução

Ao tratar de elisão fiscal, não poderíamos nos furtar de enfrentar um grande problema interpretativo: para que o ato jurídico seja considerado válido, requer-se vontade livre, agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável, e forma prevista ou não defesa em lei. Mas como saber se houve dissimulação, ao invés de um planejamento fiscal lícito, decorrente de ato jurídico válido?

Em outras palavras, como identificar se as partes celebraram negócio jurídico válido, que implicou redução ou eliminação da carga tributária (elisão fiscal), ou se incorreram em ilícito, mediante a prática de atos dissimulados praticados com os fins de disfarçar, ocultar, a ocorrência do fato jurídico tributário (evasão fiscal)?

Resolver essa questão é uma das nossas principais propostas. E não há como pretender chegar a um resultado minimamente sustentável sem interpretar, sem percorrer o árduo caminho da construção do sentido.

Nas valiosas lições do Professor Paulo de Barros Carvalho,1 "A tarefa do exegeta dos textos jurídico-positivos, ainda que possa parecer facilitada pela eventual coincidência da mensagem prescritiva com a sequência das fórmulas gráficas utilizadas pelo legislador (no direito escrito), oferece ingentes dificuldades, se a proposta for de um exame mais sério e atilado. E, sendo o direito um objeto da cultura, invariavelmente penetrado por valores, teremos, de

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um lado, as estimativas, sempre cambiantes em função da ideologia de quem interpreta; de outro, os intrincados problemas que cercam a metalinguagem, também inçada de dúvidas sintáticas e de problemas de ordem semântica e pragmática".

E a dificuldade de interpretação não se restringe aos termos vagos da evasão e da elisão fiscais. Pretende-se também neste texto analisar que embora o patrimônio dos sócios e dos acionistas não se comunique com o patrimônio de suas respectivas sociedades - pois, não fosse assim, a ativi-dade empresarial estaria fadada à estagnação, já que poucos se proporiam a comprometer parcela maior do que o patrimônio investido no negócio - nem por isso a separação patrimonial é absoluta. Tanto o Código Civil, quanto os arts. 134, 135 e 137 do CTN, regulamentam a responsabilidade dos sócios, no caso de liquidação de sociedade de pessoas, e dos administradores nas sociedades em geral. A finalidade dessas normas é zelar para que esses sujeitos cumpram, com a devida responsabilidade, as obrigações e os deveres previstos no ordenamento jurídico e nos atos constitutivos de cada sociedade.

O que deve ser levado em consideração, portanto, é que a responsabilidade pessoal dos sócios, acionistas e administradores - terceiros em relação à prática do fato jurídico, mas não à obrigação tributária - é exceção à regra da separação patrimonial, e só pode ser adotada em casos excepcionais, consistentes na prática de atos culposos ou dolosos devidamente tipificados.

É o que passaremos a expor.

2. Dissimulação de atos e negócios jurídicos

O art. 1o da Lei Complementar 104, de 10 de janeiro de 2001, alterou, dentre outros, o art. 116 do CTN, introduzindo-lhe o parágrafo único. Prescreve referido dispositivo que "a autoridade administrati-va poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária".

Dissimular é disfarçar, fingir, ocultar, encobrir. Disfarça-se uma realidade jurídica (ato ou negócio dissimulado), ocultando-se outra que é a efetivamente praticada (ato ou negócio dissimulado), para os fins de diminuir, ou até mesmo eliminar, a carga tributária. Para Maria Helena Diniz,2 em direito tributário dissimulação é a "ocultação de rendimentos pelo contribuinte com a intenção de sonegar".

A legislação complementar é inovadora no sentido de conferir às pessoas políticas competência para a criação de lei ordinária contemplando o procedimento a ser adotado para a desconsideração de atos jurídicos dissimulados. No entanto, segundo nosso entendimento, o ordenamento jurídico brasileiro, em especial a Constituição Federal, já autorizava a desconsideração de atos ou negócios, efetivada por meio da utilização das presunções hominis.

O que se alterou, portanto, foi o fato de a autorização passar a ser escrita, gerando, a partir da vigência da lei, uma modificação na classificação de presunção de omissão de receitas decorrente de ato dis-simulatório: hominis, no passado; relativa, a partir de 11 de janeiro de 2001, data da publicação daLC 104/2001.

Além disso, a legislação de que ora tratamos determinou a observância do procedimento previsto em lei ordinária, ao passo que até então a realização e o controle da legalidade dos atos de desconsideração eram pautados basicamente em princípios constitucionais (razoabilidade, capacidade contributiva etc.) e regras gerais acerca do procedimento administrativo de fiscalização.

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Entendemos inexistir inconstitucio-nalidade na desconsideração de atos jurídicos que impliquem evasão fiscal, e que presumam omissão de receitas por parte do contribuinte. Ao permitir o disciplinamen-to das consequências jurídicas advindas da prática de fatos dissimulados pelo contribuinte, desde que corretamente aplicada e sujeita a controle, a utilização da presunção para a configuração de fatos jurídicos tributários é compatível com as regras jurídicas de superior hierarquia.

A prova indiciária tem por fim sanar as dificuldades que o caso concreto suscita ao conhecimento de fatos juridicamente relevantes, alterados para os fins de se evitar a incidência normativa. Como muitos desses atos artificiosos são realizados de maneira a conferir-lhes uma aparência lícita, se a fiscalização tiver que se restringir à forma das provas que lhe são apresentadas, não terá como saber se o evento descrito no fato realmente ocorreu. Por isso, a perfeição formal de que o ato é revestido não tem o condão de afastar o dever-poder de busca da verdade material.

A preservação dos interesses públicos em causa não só requer, mas impõe, a utilização da presunção no caso de dissimulação, já que a arrecadação pública não pode ser prejudicada com a alegação de que a legalidade, a tipicidade e a segurança jurídica, dentre outros princípios, estariam sendo desrespeitados.

Por isso, não se deve afastar a aplicação da presunção, mas controlá-la, já que irregular não é a possibilidade de sua utilização, mas, eventualmente, o ato ou o produto de aplicação da norma. Exemplificando, não basta qualquer indício para que a Administração produza um enunciado prescritivo individual e concreto; o indício há de ser suficientemente grave para ensejar a convicção acerca da existência do fato descritor de evento fenomenicamente presumido pelo julgador. Ademais, a aplicação deve necessariamente observar todos os demais pressupostos de validade.

Outra questão que merece nossa reflexão diz respeito ao fato de que o parágrafo único o art. 116 não confere à Administração o direito de cobrar tributo correspondente ao montante que deixou de ser pago em face da operação economicamente mais interessante, promovida pelo contribuinte dentro dos parâmetros legais.

O fato das exposições de motivos constantes da Lei Complementar 104/2001 considerar que os planejamentos fiscais implicam diminuição de arrecadação, e que por isso deveriam, por meio da lei, ser combatidos, não significa ter sido essa a hipótese contemplada pela norma: na elisão fiscal não há fato ocultado, único fato típico constante do enunciado-enunciado capaz de gerar a desconsideração do ato.

Assim, de acordo com as razões acima, entendemos que o parágrafo único do art. 116 do CTN, introduzido pela Lei Complementar 104/2001, é constitucional. Mas pode ocorrer, entretanto, do ato de aplicação ultrapassar os limites legais, hipótese em que o ato administrativo deverá ser anulado.

E é exatamente aqui que reside a dificuldade: saber se as partes celebraram negócio jurídico válido, que implicou redução ou eliminação da carga tributária (elisão fiscal), ou se incorreram em ilícito, mediante a prática de atos dissimulados praticados com os fins de disfarçar, ocultar, a ocorrência do fato jurídico tributário (evasão fiscal).

A elisão é permitida pela legislação. Consiste no ato ou série de atos praticados antes da realização do fato jurídico tributário, visando a economia fiscal mediante a utilização de alternativas menos onerosas, permitidas pela lei. É o planejamento tributário lícito, e como exemplos poderíamos citar o da empresa que se estabelece em Município cuja alíquota do ISS é menor, ou do pai de família que integraliza todos os seus bens imóveis no capital de sua empresa e, posteriormente, doa as quotas da sociedade a seus filhos, evitando-se a incidência do imposto sobre doações.

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Já a evasão fiscal é proibida, é fraudulenta. Contra ela - e em prejuízo exclusivamente dela - o parágrafo único do art. 116 do CTN se volta. Evasão é o ato omissivo ou comissivo, de natureza ilícita, praticado com o fim único de diminuir ou eliminar a carga tributária, ocultando o verdadeiro ato ou a real situação jurídica do contribuinte.

Como exemplos, podemos citar as seguintes situações: (i) consta do contrato social da empresa que seu estabelecimento é em determinado...

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