O contrato de financiamento habitacional como mútuo, ante o Código Civil

AutorHélio Vieira Neto/Maria Cristina Gwiggner/Natascha Alves Costa/Rejane Romagnoli Tavares/Sérgio Henrique Gomes
CargoJuiz de Direito aposentado. Docente do Curso de Direito da Universidade Norte do Paraná (UNOPAR). Endereço para correspondência: Rua Jardinópolis 211. CEP 86062-410. Londrina, Paraná, Brasil/Discentes do 4o ano do Curso de Direito da UNOPAR/Discentes do 4o ano do Curso de Direito da UNOPAR/Discentes do 4o ano do Curso de Direito da UNOPAR/Discentes
Páginas105-121

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Introdução

A doutrina costuma afirmar que os contratos são fontes de obrigações. Essa ideia é uma simples metáfora, e, sendo assim, pode no máximo auxiliar na compreensão do assunto, mas nunca conseguiria efetivamente explicá-lo. Para se entender a relação entre contrato e obrigação, é necessário partir-se da diferença entre, de um lado, o vínculo que une duas ou mais pessoas no sentido de as autorizar a exigir determinada prestação umas das outras, e, de outro, o documento comprobatório da existência deste vínculo. É comum utilizar-se a expressão "contrato" para designar tanto o vínculo como o documento, o que gera alguma confusão. Para evitá-la, chamaremos de contrato apenas a relação entre as pessoas, valendo-me da expressão instrumento na referência ao seu documento probatório. Neste contexto, portanto, contrato é uma das modalidades de obrigação, ou seja, uma espécie de vínculo entre as pessoas, em virtude do qual são exigíveis prestações.

A obrigação é a consequência que o direito posto atribui a um determinado fato. Assim, quem aufere renda, por exemplo, fica obrigado a pagar o respectivo imposto; quem causa dano dolosamente a uma pessoa deve indenizá-la; quem adquire a cota não integralizada de uma pessoa sociedade limitada será responsável pelas dívidas sociais dentro de um certo limite.

Entre os fatos que o direito recolhe para considerar como ensejados de obrigação encontra-se a vontade humana. Se uma pessoa, por sua própria determinação, quer se obrigar perante outra, em função, ou não, de uma contraprestação desta, o direito tem reconhecido eficácia a tal desejo, no

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sentido de por à disposição das partes o aparelho estatal de coerção com vistas a garantir a realização da vontade manifestada.

A existência e a extensão de uma obrigação dependem das disposições de direito positivo ou da vontade das pessoas diretamente interessadas. Quando são as normas jurídicas que definem, totalmente, a existência e a extensão do vínculo obrigacional, estamos diante de uma obrigação legal. Nesta categoria, encontram-se os tributos, a pensão alimentícia, a indenização por ato ilícito danoso e os benefícios previdenciários. Porém, quando a definição da existência ou da extensão da obrigação não se encontra exaurida na sua disciplina legal, reservando-se às vontades das pessoas diretamente envolvidas na relação há faculdade de participar desta definição, temos diante de nós uma categoria diversa de obrigação. Neste segundo conjunto de vínculos obrigacionais, encontra-se o contrato, ao lado das obrigações de caráter institucional (casamento, constituição de sociedades por ações, instituição de fundações etc). Estes dois tipos de obrigações (contratuais e institucionais) diferenciam-se pelo regime jurídico de sua constituição e dissolução.

Com efeito, não apenas o Estado cada vez mais define previamente o conteúdo de determinadas cláusulas contratuais, como, por vezes, torna obrigatório o contrato ou estabelece preços, condições de pagamento etc. A título de exemplo, podem ser invocados os contratos bancários que não podem ignorar um extraordinário conjunto de regras fixadas pelas autoridades monetárias. A predefinição da existência e da extensão do vínculo em algumas hipóteses é de tal forma exaurida pelas normas jurídicas em vigor, que não resta qualquer margem de atuação para a vontade das partes. Nestes casos, como o do chamado seguro obrigatório, cuja contratação é imposta a todo proprietário de veículo automotor; rigorosamente não se cuida de uma obrigação contratual, mas legal. Para que haja contrato, é indispensável uma participação da vontade do devedor, ainda que mínima, no que se refere às definições atinentes à existência e à extensão do seu dever.

Constituição do Vínculo Contratual

Dois princípios regem a constituição do vínculo contratual: o do consensualismo e o da relatividade.

Pelo princípio do consensualismo, um contrato se constitui, via de regra, pelo encontro das vontades manifestadas pelas partes, não sendo necessária mais nenhuma outra condição. Há, no entanto, algumas exceções a este primado, isto é, determinados tipos de contrato que exigem, para a sua formação, além da convergência da vontade das partes, também algum outro elemento. De um lado, existem os contratos reais, como o mútuo ou o depósito, que se constituem somente com a entrega da coisa objeto da avença. De outro, há os contratos solenes, em relação aos quais o direito condiciona a constituição à elaboração de um certo instrumento contratual, como, por exemplo, o seguro. É claro que anteriormente à constituição do vínculo contratual inexiste qualquer dever juridicamente tutelado, e daí a importância de se caracterizar um contrato como consensual, real ou solene.

Embora haja tais exceções, em termos gerais os contratos estão constituídos (perfeitos e acabados) assim que se verifica o encontro de vontade das pessoas participantes do vínculo. Aquela que toma a iniciativa da constituição do contrato chama-se proponente ou policitante, e a sua manifestação de vontade é a proposta. Já o destinatário da proposta, por sua vez, chama-se oblato ou aceitante, e a manifestação de vontade desta última é denominada aceitação. A doutrina classifica as declarações de vontade em tácitas ou expressas, mencionando que estas, por sua vez, podem ser orais, escritas ou simbólicas. Quando a lei não exigir a manifestação expressa, ela poderá ser tácita (CC, art. 1.079). Observada, portanto, esta regra, o proponente e o aceitante podem manifestar a sua vontade pelos muitos meios de comunicação já desenvolvidos pelo homem, desde a mímica mais rudimentar até o mais sofisticado aparelho de transmissão eletrônica de dados.

Ao elaborar a sua proposta, o proponente fica obrigado pelos seus termos, salvo as exceções da

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lei (CC, art. 1.080). Esta obrigação cessa apenas nas seguintes hipóteses: a) quando a proposta é dirigida à pessoa presente; sem a fixação de prazo para a resposta, a falta de aceitação imediata desobriga o proponente (CC, art. 1.081,1); b) se feito à pessoa ausente, sem prazo, o proponente não mais estará obrigado se transcorrer prazo suficiente para a resposta, sem a manifestação do oblato (CC, art. 1.81, II); c) no caso de proposta elaborada com a fixação de prazo para a resposta, a fluência deste sem aceitação desobriga o proponente (CC, art. 1.081, III); d) arrependendo-se o proponente, estará desobrigado se transmitir ao oblato, anterior ou concomitante à proposta, a sua retratação (CC, art. 1.081, IV); e) finalmente, em qualquer caso, se o oblato manifestar a sua recusa em aceitar os termos da proposta.

Quando o contrato se insere no âmbito da tutela do consumidor, o princípio da relatividade também tem a sua pertinência ressalvada em alguns casos, pois se admite a reclamação contra o fabricante do produto viciado, embora a relação contratual de compra e venda tenha se estabelecido na verdade entre o consumidor e um comerciante.

Força Obrigatória do Contrato

Ao se vincularem por um contrato, as partes assumem obrigações, podendo uma exigir da outra a prestação prometida. Esta é a regra geral, sintetizada pela cláusula pacta sunt servanda, implícita em todas as avenças. Em outros termos, a ninguém é possível libertar-se, por sua própria e exclusiva vontade, de uma obrigação assumida em contrato. Se o vínculo nasceu de um encontro de vontades, ele somente poderá ser desfeito por desejo de todas as pessoas envolvidas na sua constituição (ressalvadas as hipóteses de desconstituição por fatores externos à manifestação volitiva). Isto significa, especificamente, que todos os contratos têm, implícitas, as cláusulas de irretratabilidade e de intangibilidade. Pela primeira, afasta-se a possibilidade de dissolução total do vínculo por simples vontade de uma das partes; pela outra, revela-se impossível a alteração unilateral das condições, prazos, valores e demais cláusulas contratadas.

A cláusula pacta sunt servanda, no entanto, não tem aplicação absoluta, posto que se encontra limitada por uma outra cláusula, também implícita em certos contratos, que possibilita a sua revisão diante de alterações económicas substanciais que surpreendem uma das partes contratantes durante a execução do avençado. Trata-se da cláusula rebus sic stantibus, que sintetiza a teoria da imprevisão.

Segundo esta cláusula, se uma das partes contratantes tiver a sua situação económica alterada em virtude de fatores imprevisíveis e independentes de sua vontade, e em função desta alteração o cumprimento do contrato acabar se revelando excessivamente oneroso para ela, então será possível a revisão das condições em que o contrato foi estabelecido.

A cláusula rebus sic stantibus é implícita apenas nos contratos comutativos, ou seja, naqueles em que há equilíbrio entre a vantagem auferida e a prestação dada por cada uma das partes. Nos contratos aleatórios, os contraentes assumem o risco de ganhar ou perder, já que inexiste um tal equilíbrio. Note-se que a distinção entre estas duas categorias de contrato não toma por base a comparação entre as obrigações das partes, que não precisam ser equivalentes em nenhuma hipótese. Leva-se em conta, isto sim, o equilíbrio...

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