Entre o fim e o princípio: a existência. Ser não ser, eis a questão!

AutorÉrica Quináglia Silva
CargoUniversité Rene Descartes
Páginas589-597

Érica Quináglia Silva1

    Between the end and principle: the existence

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Anoção de sujeito perpassa diferentes campos disciplinares e evoca, no interior desses campos, a partir de vertentes diversas, reflexão e problematização. Perquirir as distintas genealogias do sujeito moderno-contemporâneo é mister para desontologizar tal noção, amiúde considerada completa, definitiva e imutável. É precisamente essa indivisibilidade que pretendo aqui desconstruir.

Optando pelo ensaio como forma 2, penso em fragmentos - de teorias de diferentes autores e campos - que se comunicam. Suponho a multivocalidade, a heteroglossia bakhtiniana, de múltiplas, por vezes dissonantes, vozes que não se excluem, mas sim têm interseções umas com as outras.

Nas entrelinhas de tal perquirição, encaro a morte - nas dimensões social, psíquica e física - como alteridade para se pensar o outro como constituinte do eu. Entre o (ser) linear, fixo e acabado, irrompe o espaço vazio (do não ser) que, no entanto, se lhe opõe e o constitui. A morte - o outro absoluto do ser 3 - aparece como limite-liame que extingue ao mesmo tempo em que possibilita a vida.

Como sustenta Georg Simmel (1918, 1998), a morte descola a vida de seus conteúdos e dá forma a ela. "O segredo da forma está em que ela é uma fronteira; ela é a coisa em si e ao mesmo tempo o concluir da coisa, a área [Bezirk] em que ser e não-mais-ser da coisa formam unidade" (apud FERREIRA, 2000). É apesar e a partir da convicção fatalista - a inevitabilidade da morte - que advém a possibilidade da vida.

A despeito da concepção comum que dissocia a vida da morte, resguardando àquela a positividade, Simmel entende que a existência insurge de ambas, imbricadas. Mesmo este elemento que, isolado, é perturbador e destrutivo, ocupa o lugar que lhe é reservado. Presença da ausência. Como sustenta Claude Lévi-Strauss,

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[...] tout se passe, en vérité, comme si culture et société surgissaient chez les êtres vivants comme deux réponses complémentaires au problème de la mort: la société, pour empêcher l'animal de savoir qu'il est mortel, la culture comme une réaction de l'homme à la conscience qu'il l'est (LÉVISTRAUSS, 1984).

Por sua vez, Edgar Morin (1997) assevera que a sociedade e a cultura existem não apenas apesar da morte e contra a morte, como também pela morte, com a morte e na morte. Finalmente, de acordo com Zygmunt Bauman:

[...] it is because we know that we must die that we are so busy making life. It is because we are aware of mortality that we preserve the past and create the future. Mortality is ours without asking - but immortality is something we must build ourselves. Immortality is not a mere absence of death; it is defiance and denial of death. [...] There would be no immortality without mortality. Without mortality, no history, no culture - no humanity (BAUMAN, 1992).

A morte é, pois, encarada como fim - não somente como final, como também como finalidade - da vida.

A temática da morte está, por sua vez, atrelada à noção de sujeito. Percorrer algumas das teorias a respeito dessa noção é, portanto, fundamental para a investigação de tal temática.

O sujeito é construído simbólica, social e historicamente. A noção que lhe adjetiva como uno e indivisível não se sustenta. Se estilhaça. Despontam regimes de subjetivação. Restam pulsos de vida. Vontade de potência. 4

São esses modos de subjetivação que Michel Foucault (1990, 1995) apresenta. 5 Esse autor introduz uma nova dimensão da subjetividade, derivada, mas distinta, do poder e do saber: o duplo. O duplo como o lado de dentro do lado de fora. Não é um desdobramento do Um, mas uma reduplicação do Outro.

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Não é uma reprodução do Mesmo, mas uma repetição do Diferente. Ou seja, não se trata da emanação de um Eu, mas da instituição da imanência de um sempre-outro, ou de um Não-eu. Eu me vejo como o duplo do outro - eu encontro o outro em mim. A morte ou as dobras da memória são os dois caminhos do duplo.

Foucault volta aos gregos para mostrar que o que decorre, então, é uma relação da força consigo, um poder de se afetar a si mesmo, um afeto de si por si. Essa relação, a subjetivação, por sua vez, se reintegra naqueles sistemas - de poder e de saber - de que derivou. E se metamorfoseia. A subjetivação, esse afeto de si para consigo, se faz, assim, por dobras. Dobras variáveis, que operam "por sob os códigos e regras" do saber e do poder, juntando-se a eles, desdobrando-se e fazendo(-se) outras dobraduras. Desse(s) modo(s), o sujeito se (re)faz constantemente.

O fora constituindo por si mesmo um dentro coextensivo (re)encontra a vontade de potência para descobrir esse lado de fora como limite a partir do qual o ser se dobra. A vida nas dobras. Como mostra Gilles Deleuze (1988), a história foucaultiana é uma história entregue a Nietzsche, ou à vida. A forma-Homem se constitui nas dobras da finitude - ela coloca a morte dentro do homem.

Tendo o homem aprisionado a vida, o super-homem nietzscheano a libera dentro do próprio homem. As forças do homem entram, então, em relação com um finito-ilimitado, uma superdobra, o eterno retorno.

Como sugere Judith Butler (1997, 1998), a partir de Foucault, embora ele não o tenha feito, é possível dialogar com a psicanálise. O deslocamento da investigação para o psíquico faz-se profícuo para a problematização dessa teoria do sujeito abarcada - pela consideração de um sujeito outro, não somente não substancial, como também não cartesiano (que pensa, logo existe - centrado, portanto, na percepção-consciência) - e, assim, para a reconsideração do social, que ao psíquico, precisamente na psicanálise freudiana e lacaniana, está atrelado.

Ora, a psicanálise é também eloqüente em evidenciar a ficção da unicidade do indivíduo. É o sujeito psi relacional - constitui-se no outro, pelo outro e a partir do outro.

O estádio do espelho sobre o qual discorre Jacques Lacan (1966) marca a passagem do imaginário para o simbólico. Antes mesmo que a linguagem como Outro restitua ao Eu sua função de sujeito, o eu como imagem virtual que...

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