Fim do trabalho ou trabalho sem fim? A terceirização laboral e a necessidade de dotar a legislação trabalhista internacional e local de uma "grande angular" protetivo-regulatória, conditio sine qua non de justiça social

AutorSheila Stolz
Páginas51-64

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O cenário não há mudado nunca. O que trabalha segue sendo aquele a que não se há dado a morte, ao que lhe é negado esta honra. E o trabalho, é, em primeiro lugar, o signo da humilhação de não ser julgado digno senão de vida. O capital explora os trabalhadores à morte? Paradoxalmente, o pior que lhes infringe é negar-lhes a morte. É de diferir sua morte o que lhes faz escravos e os destina ao rebaixamento indefinido da vida no trabalho. (BAUDRILLARD, 1993, p.53).

1. Introdução

Faz exatos 10 anos que ocorreu, entre os dias 25 a 29 de junho de 2007, na cidade de Salvador (Bahia/Brasil), a Conferência Regional para a América Latina e o Caribe do International Federation of Chemical, Energy, Mine and General Workers’ Unions (ICEM2). Naquela oportunidade, acordou-se que o dia 28 de julho fosse instituído como o dia alusivo ao termo de ação conjunta da Região contra a terceirização no trabalho. A data simbólica foi escolhida não somente como um marco de combate cole-tivo à chamada terceirização, mas também como a forma de rememorar o trágico acidente que soterrou, no dia 28 de julho de 1983, cerca de 200 trabalhadores quando estavam construindo a segunda maior hidroelétrica da Colômbia, no rio Guavio. Os trabalhadores que perderam suas vidas naquele dia estavam obrando na construção de um túnel de acesso e, em mais de uma oportunidade, tinham advertido os responsáveis técnicos sobre as falhas geológicas que podiam desencadear esta tragédia. Acidentes como o especificado acontecem, quase sempre, pela inescrupulosa forma como atuam aquelas(es) que somente visam lucros em seus empreendimentos mantendo em completa desproteção as pessoas que trabalham de forma precarizada, tal qual os trabalhadores terceirizados que obravam e terminaram a construção da Hidroelétrica do Guavio.

As grandes mudanças que desde os anos 70 do século passado vêm ocorrendo no mercado de trabalho, levaram a novas formas de trabalho que muitas vezes não se encaixam nos parâmetros legais (de âmbito nacional e inter-nacional) que começaram a reger (particularmente após a reconstrução da Europa com o fim da Segunda Guerra Mundial) e todavia seguem conduzindo em menor ou maior grau de proteção, as relações de trabalho.

A subcontratação, a terceirização, a flexibilidade laboral externa, a deslaboralização das relações de trabalho e o trabalho não registrado ou informal, são termos distintos para nomear a exteriorização dos riscos que empresários/ empresas descarregam sobre as pessoas que trabalham, que, sem o apoio das garantias do Direito do Trabalho, ficam submetidas às pressões dos contratos de prestação de serviços normatizados pelos códigos de Direito Civil e/ ou de Direito Empresarial.

Com a subcontratação laboral se suprimem as principais conquistas da classe trabalhadora como, por exemplo, a limitação da jornada de trabalho, o recebimento de salários, o direito à proteção à saúde e meio ambiente de trabalho equilibrado, entre outros. Assim sendo, muitas(os) trabalhadoras(es) se vêm forçadas(os) a encarregar-se da própria segurança e previdência social.

Na América Latina as(os) trabalhadoras(es) dos distintos setores econômicos do meio rural e urbano têm padecido da precarização produzida pela subcontratação laboral. Este fenômeno denunciado por sindicatos, organizações não governamentais e alguns partidos políticos, parece

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ser incontrolável em sua expansão e implicações tanto que, frente a estes reclamos, determinados governos de matriz mais progressista tentaram, nas últimas décadas, se não erradicar pelo menos contornar a terceirização laboral. Mas, o contexto atual marcado pela recessão econômica e as alianças espúrias de muitos Governos com o capital, somado à vulnerabilidade da classe trabalhadora submersa no trabalho informal ou no desemprego, impedem um combate efetivo à expansão da terceirização na Região – haja vista a aprovação, no Brasil, da chamada “Lei da Terceirização” – Lei n. 13.429 de 31 de março de 20173.

No presente artigo, que teve como procedimento metodológico básico a pesquisa bibliográfica alicerçada tanto nos aportes teóricos, entre outros, de Castel Robert, Manuel Castells, Horst Kern, Michael Schumann e Enrique De La Garza Toledo, bem como nos Informes e Relatórios Globais do International Labour Organization (Organização Internacional do Trabalho – ILO/OIT), tratar-se-á de analisar o objeto desta investigação em três seções. Na primeira delas, avaliar-se-á a terceirização laboral tendo como ponto de partida os anos 80 do século passado quando iniciou-se, a nível mundial, uma verdadeira transformação do modelo econômico-político adotado no Ocidente, após o término da Segunda Guerra Mundial. A partir desta aproximação inicial, revelar-se-ão a pujante emergência das formas atípicas de trabalho e da consequente expansão, no mercado de trabalho mundial, da deslaboralização. Por fim, na última seção deste paper, entrelaçar-se-ão as observações concretizadas em ambas as seções com o exame minudenciado sobre o atual status das políticas de regulamentação propostas pela ILO/OIT para o enfrentamento da terceirização que tende, não somente a precarizar as relações de trabalho, mas, sobretudo, a lesar a dignidade daquelas pessoas que laboram, tal como se denotará da leitura destas páginas.

2. Ponto de partida

A princípio dos anos 80 do século passado começou a se produzir, a nível mundial, uma metamorfose no mode-lo econômico defendido pelo keynesianismo4 e acolhido, até então, por muitos Estados ocidentais, particularmente por aqueles que haviam sido reconstruídos após o fim da Segunda Guerra Mundial. Estas visíveis mudanças acabaram substituindo o modelo keneysiano por uma nova concepção econômica chamada de neoliberal e implementada, simultaneamente, pelos governos dos presidentes estadunidenses Richard Nixon (mandato: 1969-1974) e Ronald Reagan (mandato: 1981-1989) e da primeira ministra do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte no período datado de 4 de maio de 1979 a 28 de novembro de 1990, Margaret Thatcher. Esta nova ideologia político-econômica propugnava enfaticamente em seus delineamentos teórico-práticos a retirada do Estado da economia e a transformação profunda dos mercados econômicos e de trabalho.

Cabe recordar que os anos oitenta estavam também sob as influências da desregulamentação do sistema monetário internacional5 e dos dois grandes choques petrolíferos de altas de preços ocorridos em 19736 e 1979 e que deram origem à crise econômica que travou

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o ritmo de crescimento nos países industrializados. O problema do desemprego, que no princípio dos anos 70 quase desaparecera, voltou a afligir as economias europeias e estadunidense, mas desta vez começou de forma focalizada atingindo primeiro e essencialmente os setores industriais dependentes do petróleo e o operariado tradicional, expandindo-se, depois, entre os jovens sem formação especializada, as mulheres e as(os) trabalhadoras(es) imigrantes. A taxa de desemprego na Comunidade Econômica Europeia chegou a atingir, em 1983, cerca de 10% da população ativa7 e, com base nela, medidas de contenção baseadas em uma todavia incipiente flexibilização laboral foram tomadas.

Os problemas dos anos 70 refletiram de forma marcante e profunda também nas economias periféricas, entre elas, as Latino-americanas, seja no seu endividamento externo estimulado pelas economias centrais8, como também pelas fortes pressões inflacionárias internas. A dívida externa acumulada e que continuava a crescer no início dos anos 80, dado aos elevados encargos financeiros agravados pelo aumento das taxas de juros internacionais, levou ao estrangulamento externo de todas as economias da Região. O que motivou, ademais, a implementação do projeto político-econômico defendido pelo neoliberalismo e que deu origem ao conhecido Washington Consensus lançado em 1989 e adotado no Brasil e no resto da América Latina a partir dos anos 90.

Dito “Consenso” tratava de um conjunto de medidas composto de dez regras básicas formuladas por economistas de instituições financeiras sediadas em Washington D. C., entre elas o International Monetary Fund (IMF/ FMI9), o World Bank Group (WBG/BM10) e o United States Department of the Treasury11 e que se tornou a política oficial do FMI a partir de 1990, quando passou a ser “prescrita” como medida de promoção do necessário e indispensável “ajustamento macroeconômico” dos países em desenvolvimento que passavam, naquele momento, por inúmeras dificuldades. O plano de aplicação das metas previstas no Consenso, foi elaborado por John

Williamson (1993) e implicava um aglomerado de priori-dades, tais como a estabilização econômica, disciplina fiscal de controle do gasto público – com redução drástica dos recursos destinados aos programas sociais, liberalização comercial e financeira, crescente abertura da economia (comer-cial e financeira), privatização das empresas estatais e desregulamentação. Uma vez alcançadas essas metas, afirmava-se, criar-se-iam as condições necessárias e suficientes para cada país que as aplicasse entrar na rota do desenvolvimento (STOLZ, 2013, p.495).

A abertura comercial unilateral praticada na América Latina nos anos 80 e 90 provocou grandes déficits no balanço de pagamentos dos países da Região, que desembocaram não somente no aludido endividamento externo (alcançando um liberalismo suicida: aproximadamente 5% do Produto Interno Bruto (PIB) de cada país, entre eles o Brasil, a Argentina, o México e o Chile), mas também e sobretudo, na desnacionalização das economias12. O neoliberalismo latino-americano implementado com a abertura dos mercados financeiros, de energias e de telecomunicações, foi concretizado por meio da...

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