Justiça fiscal e igualdade tributária: a busca de um enfoque filosófico para a tensão entre poder de tributar e direito de tributar frente à modernidade tardia no Brasil

AutorViviane Nery Viegas
Páginas67-89

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1 Introdução

A temática desenvolve acerca da necessidade de revisitar o conceito de justiça fiscal em face da (in)evolução política do Estado brasileiro, verificando os conceitos de Direito, Estado e Justiça, em especial desta última, para estabelecer a relação entre Direito e Política, especificamente no âmbito fiscal, posto que a tributação é uma das maiores ingerências estatais sobre a sociedade. 12

De início, é apresentada a ideia de justiça fiscal, segundo os preceitos da isonomia e da neutralidade como ideais de aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana. Pretende-se demonstrar que o primado da igualdade precisa andar junto com o ideal de justiça, para que se harmonizem as relações sociais, seja no âmbito do mercado econômico - práticas concorrenciais -, seja entre os contribuintescidadãos.

À vista disso, percebendo a necessidade de envolver, não só o papel da Justiça, mas também o do Estado, o presente estudo passa a preocupar-se com a investigação do caso Brasileiro, apresentando o papel do Direito e da Justiça frente ao Estado. Neste ponto, levanta-se a problemática da modernidade tardia no Brasil e, nesse passo, a dificuldade de aplicar as teorias de Justiça e de Estado experimentadas em países de primeiro mundo. Então, são apresentadas as modernas teorias da Justiça, a partir dos ideais da Antiguidade, buscando envolver os três debates centrais do estudo: Direito, Estado e Justiça.

Posto isto, retorna-se a questão da justiça fiscal, agora revisitando os conceitos de poder de tributar e direito de tributar, a fim de ampliar o espectro estatal sobre a tributação. Sendo ela, expressão da soberania estatal, deve levar em conta o aspecto social que acarreta.

Nesse sentido, questiona-se qual o verdadeiro papel da tributação. Será que, ainda, podemos entender a tributação como um poder estatal? Ou é apenas um direito do Estado, a fim de cumprir suas tarefas sociais - políticas públicas.

Frente à emergente constitucionalização dos direitos no Brasil, não há outra maneira de enfrentar o Direito Tributário, senão como um Direito Constitucional Page 68 Tributário. A inclusão e aplicação dos princípios que regem a tributação devem ser realizadas à luz dos princípios constitucionais. Todavia, a abordagem destes princípios é suficiente?

2 Justiça fiscal: os princípios da isonomia e da neutralidade tributária como ideais de aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana

No seio do Estado democrático de Direito, o sistema de defesa da livre concorrência e da igualdade tributária tem a isonomia como aspecto essencial para o desenvolvimento do sistema capitalista, já que a carga fiscal suportada pelos concorrentes é um dos fatores de desequilíbrio da prática concorrencial.

O conteúdo do princípio da igualdade, inserido no sistema normativo constitucional de forma generalista, também tem espaço e pertinência na seara do Direito Tributário.

Como bem aponta Mizabel Derzi3, a aplicabilidade da isonomia no Direito Tributário é questão tormentosa, já que esta deve ser formulada de maneira positiva, sendo certo que em matéria fiscal, interessa menos saber o que o legislador está proibido de distinguir e mais o que ele deve discriminar.

Nesse sentido, o dever oriundo de uma relação jurídica obrigacional de levar o dinheiro aos cofres públicos, tendo como pressuposto a repartição dos encargos financeiros do Estado pelos cidadãos, gera a postulação, pelos sujeitados à carga fiscal (contribuintes), de uma divisão igualitária daquele ônus.

A aplicação do princípio da isonomia, portanto, deve ser conjugada com o imperativo contido no princípio da capacidade contributiva e no princípio da vedação ao confisco, conformando-se a exigência estatal com os ideais de justiça inseridos na Constituição. Tudo isso à luz do princípio da dignidade da pessoa humana.

Tais princípios, importante frisar, estão erigidos à categoria de princípios constitucionais, caracterizando-se como direitos e garantias fundamentais do cidadão contribuinte, sendo, efetivos e voltados à concretização do Estado Democrático de Direito.

Posto isto, questiona-se: qual (quais) o (s) instrumento (s) para a efetiva aplicação do princípio da isonomia no Direito Tributário? A resposta não é singela. Com efeito, muitas vezes o legislador ordinário, face ao princípio da legalidade estrita que rege o Direito Tributário, tem dificuldade de conferir aplicação efetiva e concreta aos princípios que norteiam o primado da isonomia fiscal.

Uma das soluções que a doutrina sustenta é a aplicação do princípio da neutralidade econômica dos tributos como norma instrumental para a consagração da isonomia fiscal. Page 69

Este princípio como bem esclarece Fernando Facury Scaffy4 deriva do Princípio da Isonomia Fiscal (artigo 150, II, CF) que veda ao Poder Público o tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, o que alcança, sem menor sombra de dúvida, os aspectos concorrenciais. Ou seja, o princípio se aplica tanto para as relações concorrenciais entre empresas ou pessoas que exercem atividade econômica, como entre os contribuintes comuns, os chamados cidadãos fiscais.

É certo que qualquer medida impositiva de natureza tributária interfere na capacidade competitiva dos concorrentes, possuindo relação direta com as relações de concorrência entre empresas que forem afetadas pela tributação, de tal modo que esta favoreça ou desfavoreça umas em face de outras.

Da mesma forma, uma tributação desigual entre contribuintes-cidadãos tem o condão de afetar as relações sociais de um determinado indivíduo, ferindo, muitas vezes, sua esfera pessoal, desvalorizando o primado da dignidade da pessoa humana.

A neutralidade em matéria tributária, no entanto, não é um conceito simples de ser aferido e, por sua vez, aplicado. Seu conceito, segundo leciona Luís Roberto Barroso, advém dos conceitos de impessoalidade e da imparcialidade:

A idéia de neutralidade do Estado, das leis e de seus intérpretes, divulgada pela doutrina liberal-normativista, toma por base o status quo. Neutra é a decisão ou a atitude que não afeta nem subverte as distribuições de poder e riqueza existentes na sociedade, relativamente à propriedade, renda, acesso às informações, à educação, às oportunidades etc. Ora bem: tais distribuições, isto é, o status quo - não são fruto do freqüentemente, nada têm de justas. A ordem social vigente é fruto de fatalidades, disfunções e mesmo perversidades históricas. Usá-la como referência do que seja neutro é evidentemente indesejável, porque instrumento de perenização da injustiça. Veja-se que o problema não está só na neutralidade em si, mas em qual ponto de referência do que seja neutro. O status quo vigente nas sociedades desiguais - e poucas não o são - certamente não pode fundar-se no status quo não significa que não haja lugar para ela. Idealmente, o intérprete, o aplicador do direito, o juiz, deve ser neutro.5

Nesse passo, a neutralidade econômica dos tributos presta-se, primeiramente, a estabelecer a necessidade de se evitar mudanças nos comportamentos dos agentes econômicos, de forma a manter-se o status próprio dos movimentos econômicos e sociais, sob a máxima de que a tributação não deveria intervir nas condições do mercado. Todavia, tendo em vista que nenhum tributo pode ser considerado absolutamente neutro, porque terá sempre influência sobre o processo econômico e no Page 70 contexto social global, a segunda máxima que emana do referido princípio (e, inclusive, a mais adequada) denota que a neutralidade realizaria o princípio da isonomia fiscal, não admitindo tratamentos diferenciados para contribuintes equiparados (artigo 150, III da Constituição Federal).

Assim, a doutrina da neutralidade fiscal assenta-se na perspectiva liberal da tributação, defendendo a redução do papel do Estado-interventor ao papel do Estadopolícia, considerando-se neutro o sistema que não interfere na otimização da alocação de meios de produção, que não provoque distorções, conferindo segurança jurídica para o exercício das atividades empresariais, o que vai de encontro à definição de fiscalidade, a qual é forma de intervenção do Estado nas economias de mercado, caracterizando-se esta como condição para seu funcionamento.

Nesse passo, o mito da neutralidade econômica dos tributos esbarra em seu próprio eixo, já que todas as formas de tributação provocam distorções, trazendo a discussão sobre o verdadeiro papel do princípio no sistema tributário.

De um lado, sustenta-se que os tributos não devem prejudicar ou favorecer grupos específicos dentro da economia - os tributos, por isso mesmo, devem ser neutros quanto a produtos de natureza similar, processos de produção, formas de empresas, evitando influenciar de forma negativa na concorrência; de outro, a tributação deve intervir para suprimir ou atenuar as imperfeições.

No presente caso, o importante não é que se determine uma função exata para o princípio, mesmo porque isso seria demasiadamente difícil, posto que ele não é absoluto. Quer-se, sim, ventilar a discussão sobre a função da neutralidade dos tributos, buscando uma nova forma de justificá-lo e aplicá-lo, uma forma material, que se preocupe com o conteúdo da norma e as implicações sociais que ela pode trazer.

2. 1 A constitucionalização dos direitos

A pretensão de fundamentar a justiça fiscal e a igualdade tributária pelo âmbito do princípio da...

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