A filosofia prática aristotélica

AutorMarcella Furtado de Magalhães Gomes
Páginas33-201
2. A FILOSOFIA PRÁTICA ARISTOTÉLICA
Quando se está em desacordo quanto ao bem soberano, é
quanto a toda a filosofia que se está em desacordo.1
Cícero
2.1 – CONSIDERAÇÕES METAFÍSICAS
Interrogado sobre o que havia aprendido com a filosofia, disse:
“a fazer, sem ser comandado, aquilo que os outros fazem
apenas por medo da lei”.2
Aristóteles
A concepção grega do mundo e das coisas é, desde as
origens, finalística. Tudo o que é, é segundo uma razão. A
natureza não é e não cria nada ao acaso. Há uma ordem
subjacente ao universo que cabe ao homem revelar, enquanto
ser consciente de toda a existência. Ele também possui um
papel específico nesta ordem, que lhe cabe atualizar.
O objetivo que cumpre cada ser nesta ordem o define. Se
no movimento natural da vida o ser não atua segundo o seu
fim na cadeia causal do cosmos, ele não se torna ou deixa de
ser, in concreto, o que é em essência.
Tendo em vista a atualização do fim, cada ser possui, por
natureza, uma tarefa (ergon)3 e uma disposição (arete4
virtude) que lhe permite alcançar este objetivo. É a obra de
todo ser a atualização de seu fim e seria absurdo se a natureza
não nos dotasse da configuração adequada à concretização
desta atividade. A realização do ser é a realização da sua
tarefa específica segundo a natureza, ou seja, é o alcance do
fim e, assim, o se tornar em ato o que se é em potência.
O ser torna-se cada vez mais hábil em seu propósito à
medida que opera. Ou seja, quanto mais o ser atua segundo o
fim a que se destina, mais apto a realizá-lo aquele se torna.
Neste sentido, explicita Novaes (2006, p. 212-213):
Este modo de pensar pode ser facilmente ilustrado por qualquer
objeto feito pelo homem. Uma faca tem como fim o corte, e sua
arete é estar afiada. Sempre que nos deparamos com objetos feitos
pelo homem que nos são desconhecidos, portamo-nos como o
homem grego, e de imediato perguntamo-nos “para quê” ele
serve, ou seja, qual o seu fim. Enquanto o fim não nos é conhecido,
o objeto permanece como algo estranho, por mais que suas
características físicas sejam simples e facilmente descritíveis. Ou
seja, os objetos produzidos definem-se pela sua finalidade. Uma
mesa não é algo composto por uma tampa apoiada sobre quatro
pernas, pois pode possuir inúmeras outras características. Uma
mesa é qualquer coisa que sirva para, partícula que nos indica o
fim, apoiar ou dispor outros objetos, e a sua arete é o que
possibilita fazê-lo, podendo ser o tamanho, a resistência ao peso
ou a durabilidade. A mesa da sala de jantar deixa de ser mesa e
torna-se banco quando dela usamo-nos para sentarmo-nos, ou
cama, quando para deitarmo-nos, ou abrigo, quando usada para
protegermo-nos num desabamento. Uma toalha estendida no
chão torna-se mesa num pic-nic, um caixote torna-se mesa num
jogo de baralho, um saco de areia torna-se mesa numa trincheira
de guerra.
Esta forma de pensar refere-se a todas as esferas da
existência, à natureza, à arte e à ação ética, porque em todas
elas está imanente a inteligibilidade. A razão atribui fins e
virtudes a toda realidade para que possa compreendê-la.5
A filosofia aristotélica, tanto em seus temas gerais como
em sua reflexão prática, não se aparta desta racionalidade
teleológica, como nos ensina Ross (1957, p. 338):
El punto de vista teleológico es característico de todo su
[Aristóteles] sistema. La significación y la naturaleza de toda cosa
en el mundo, criatura viviente, instrumento o comunidad, deben
ser consideradas según el fin de su existencia. En el caso de un
instrumento, es un fin deseado por quien lo usa, y la forma del
instrumento está determinada por este fin impuesto desde afuera
a su materia. En el caso de una criatura viviente o de una
comunidad, el fin es inmanente a la cosa misma […] La
explicación de las cosas no debe buscarse en aquello a partir de lo
cual se han desenvuelto, sino en aquello hacia lo cual se
desenvuelven; su naturaleza no se revela en su origen sino en su
destino.
Na Metafísica, o conhecimento de algo é identificado à
descoberta de sua causa, ou seja, ao porquê de sua existência
e, desta forma, também ao fim de sua existência. Vejamos
como se expressa Aristóteles (Metafísica, I, 3, 983 a 25-34):
Com efeito, dizemos conhecer algo quando pensamos conhecer a
causa primeira. Ora, as causas são entendidas em quatro
diferentes sentidos. (1) Num primeiro sentido, dizemos que causa
é a substância e a essência. De fato, o porquê das coisas se reduz,
em última análise, à forma e o primeiro porquê é, justamente, uma
causa e um princípio; (2) num segundo sentido, dizemos que
causa é a matéria e o substrato; (3) num terceiro sentido, dizemos
que causa é o princípio do movimento; (4) num quarto sentido,
dizemos que causa é o oposto do último sentido, ou seja, é o fim e
o bem: de fato, este é o fim da geração e de todo movimento.
Todas as coisas são em virtude de um princípio
ordenador que delimita a matéria amorfa e a especifica,
separando-a da indeterminação. Esta ação individualizante
da forma é a causa eficiente da existência e opera em direção
ao fim, ou seja, à razão de ser de algo. As coisas são
condicionadas, enquanto as consideramos estaticamente, por
uma causa formal – a forma ou essência de algo – e uma
causa material – o substrato ou matéria de que a coisa é feita.
Esse movimento, o produzir-se, impõe-se pela causa eficiente
– aquilo de que provêm a mudança e o movimento das coisas
– e pela causa final – o telos, o fim ou escopo de todas as coisas
e ao qual cada uma delas tende respectivamente, aquilo em

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