A Filosofia do Direito de Farias Brito

AutorJosé Antonio Tobias
Ocupação do AutorDoutor e Livre-Docente em Filosofia. Professor de Filosofia do Direito na Faculdade de Direito de Alta Floresta
Páginas299-341

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8. 1 Introdução

No cenário filosófico brasileiro, Farias Brito é o pensador de maior projeção, é "o nome daquele que é considerado por excelência o filósofo brasileiro"344. Ele apresenta uma filosofia original e, até certo ponto, independente, o que, desde 1500, não aconteceu e nem acontecia com os pensadores nacionais, em geral repetidores de ideias anteriores e dominantes de escritores e filósofos da Europa. No período de Farias Brito, tanto em Recife quanto no Rio de Janeiro, dominavam o Positivismo, o Kantismo e o Materialismo de Haeckel.

Pe. Leonel Franca, em sua Noções de História da Filosofia, inicia a exposição da filosofia de Farias Brito, que não era católico e negava todas as religiões, dizendo: "É com verdadeiro prazer que iniciamos esse breve estudo (de Farias Brito) sobre o mais original de nossos pensadores".345Farias Brito, bacharel da Faculdade de Direito do Recife, teve, em sua vida, em seus livros e em sua filosofia influência marcante da Escola do Recife, cujo apogeu foi pela época em que lá viveu. Depois mudou-se para Belém e para o Rio de Janeiro, na época, capital da República, onde permaneceu até o fim de sua vida; então, já homem feito e pensador em pleno viço de liderança filosófica. Nesse tempo, em que nascem e crescem a vida e a filosofia de Farias Brito, é útil para compreendê-las uma exposição da Escola do Recife e da Reno-vação Filosófico-Educacional, verificada esta mais no Rio de Janeiro, então, em boa parte, a capital cultural do Brasil.

8. 2 O Brasil de 1900

A Guerra do Paraguai (1864-1870), além de fazer o brasileiro sentir pela primeira vez o que é deveras uma guerra, deu-lhe o sabor da vitória, personalizando-o mais e trazendo-lhe um conhecimento maior do

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ignorado mundo hispano-americano e de suas peculiaridades sócio-culturais. O século XIX, especialmente sua segunda metade, foi real-mente o século-eixo do Brasil. Nesse período, inconsciente mas disparadamente, desencadeou a nação brasileira seu processo de início de universalização de ideias e de filosofias, solenemente inaugurado pela Carta Régia de 28 de janeiro de 1808 que abria os portos, inclusive culturais, do Brasil às nações amigas de Portugal e do Brasil.

Além da Abolição da Escravatura, outro acontecimento marcante para a personalização do Brasil de 1900 foi a expansão do Positivismo, especialmente do espírito positivista, de modo particular no centro e no sul do Brasil. O culto das ciências positivas, as primeiras ideias de valorização do proletário, o nascimento da Questão Social, a revolução trazida pelo café, a contestação positivista dos valores espirituais, o complexo contra a Filosofia, contra a Metafísica e contra a Psicologia Filosófica, a reforma de Benjamin Constant, a fundação da primeira universidade brasileira e a renovação filosófico-educacional simbolizada pelo Movimento de Leão XIII-Farias Brito darão o tom para a formação das ideias no Brasil das últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX.

A Proclamação da República, em 1889, relegando como relíquia o Império e saudando entusiasticamente a República, preparou o povo para mudanças e renovações, impossíveis em tempos de antanho. Assim, logo de início, foi propiciada chance para a penetração do Positivismo através das reformas educacionais de Benjamin Constant e de Rivadávia Correia.

Por causa da imigração, do capital acumulado pelo café, do progresso comercial e industrial, das primeiras instituições oficialmente dedicadas à pesquisa, do tradicional espírito bandeirante e pioneiro de seus filhos, o Estado de São Paulo veio a tornar-se o palco de várias das primeiras grandes modificações do Brasil do século XX.

Os ideais da Revolução Francesa e da independência norte-americana, especialmente através da literatura importada e da penetração da

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educação protestante no centro e sul do Brasil, incrementaram a sede de renovação, primeiro para a tomada de consciência e logo depois para a tentativa de solução dos problemas brasileiros.

No Brasil, no tempo dos jesuítas, houve intenso estudo de Filosofia e de Teologia, chegando a funcionar a Universidade do Brasil346,

materialmente ainda que não oficialmente existente, pelo ano de 1592, no Colégio da Bahia, em Salvador, então capital do Brasil, onde eram dadas as primeiras láureas de mestre em artes, grau este "então mais estimado do que é hoje o de doutor por qualquer Academia"347.

No Brasil, depois dos jesuítas, durante mais de dois séculos, pouco existiu de ensino da Filosofia e praticamente nada de Filosofia do Direito; nenhuma Faculdade de Filosofia, nenhum Curso de Filosofia, oficialmente nenhuma Faculdade de Educação ou Curso de Pedagogia; no ensino superior, nem sequer uma cadeira de Filosofia, oficialmente estabelecida. Ora, educação destituída de todo ensino de Filosofia da Educação gera povo que não forma pensadores e nem educadores. Constitui terra de autoditadas no que de mais vital e importante existe: as ideias, a educação e consequentemente suas mais profundas e transcendentais realizações; é ensino sem base científica, fundamentado no empirismo, na tradição, na imitação despersonalizante do estrangeiro, na "macaqueação" educacional, conforme numerosas denúncias de pensadores nacionais e estrangeiros.

Neste emaranhado complexo que é o Brasil de 1808 a 1920, junto com as influências e consequências da Guerra do Paraguai, da Abolição da Escravatura, do espírito positivista, da Proclamação da República, dos progressos do Estado de São Paulo, das ideias da Revolução Francesa e da Independência dos Estados Unidos, da

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deficiência de todo o sistema educacional brasileiro que não dispunha de nenhum curso de Filosofia e de nenhuma cadeira de Filosofia da Educação, misturam-se, na mais exótica miscigenação, a antiga educação jesuítico-cristã, as heranças do Cientificismo de Pombal, as tradições da aristocratização do ensino brasileiro, a projeção dos bacharéis e doutores, frutos de uma escola média reduzida a simples apêndice de preparatórios para as poucas faculdades isoladas do ensino superior de então.

Tudo isso, porém, vem tocado por uma inicial mas já sedenta vontade de acertar e de renovar, simbolizada pela Semana da Arte Moderna de 1922, prenúncio da explosão do Brasil de 1964 em diante.

Interessante observar que as mesmas duas correntes estrangeiras, Positivismo e Evolucionismo, juntas com a Renovação Filosófica-Educacional de Leão XIII e Farias Brito prepararam o Brasil e sua educação para serem autênticos; pelo menos para o desejo de serem a si mesmos e de serem brasileiros. Até aqui, envergonhava-se o brasileiro de ser brasileiro e das coisas de sua terra. Típicas e ilustrativas a esse respeito são certas afirmações de Elysio de Carvalho, nascido no Estado do Ceará, justamente o Estado de Farias Brito e um dos Estados do mais sofrido e acendrado amor ao Brasil:

"Como vistes", escreve o autor cearense, "não citei nenhum escritor brasileiro entre os que mais influíram na formação de minha mentalidade, e isto, muito naturalmente, crede com sinceridade, porque não sofri a influência de nenhum deles. O intelecto brasileiro está muito baixo para influir-me... Asseguro-vos que a minha alma é muito pouco brasileira: e isto, naturalmente, porque marcho com o progresso das ideias do século. E propriamente falando, nem pelas minhas tendências, nem pelas minhas aspirações, não sou um escritor brasileiro e não me pareço em coisa alguma com qualquer deles".348

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8. 3 A liderança do Recife

A sociedade e a educação brasileiras, desde o tempo dos jesuítas, vinham encharcadas de espírito literário e retórico, muito bem sintetizadas inicialmente pelo Mito do Padre349e, depois, no século XIX, pelo Mito do Doutor, formado em Direito. Por isso, de um lado, academizou-se o ensino médio e, de outro lado, ficou o ensino superior dominado pelas Faculdades de Direito. Em virtude disso, a segunda metade do século XIX foi o tempo do reinado das duas primeiras Faculdades de Direito do Brasil: a Faculdade de Direito do Recife, no nordeste e norte, e a Faculdade de Direito de São Paulo, no centro e sul do Brasil. Nenhuma universidade, e muito menos nenhuma faculdade, jamais teve na História do Brasil projeção comparável a qualquer uma dessas duas escolas; talvez se lhe possa comparar, de 1934 a 1960, a Universidade de São Paulo, de que faz parte aliás a Faculdade de Direito de São Paulo.

Recife, além do tempo dos holandeses com as melhorias de Maurício de Nassau, já vinha se projetando pelas suas riquezas e pela sua literatura; mas como se estava no século dos doutores, era normal que fosse através de sua Faculdade de Direito, a maior marca de Recife deixada na História da Educação Brasileira e da Filosofia do Direito no Brasil.

As ideias, no Brasil de então, eram cultivadas, antes de mais nada, ou por meio da Literatura, herança jesuítico-portuguesa, ou por meio das ciências do Direito. Ora, qualquer cientista, qualquer literato, aprofundando sua área de trabalho e de investigação, é normal que acabe encontrando-se com a Filosofia; com a Filosofia das Ciências350, própria de sua área. E assim aconteceu no Recife. Diferença: nenhum dos líderes, nenhum dos fundadores e personalidades da Escola do Recife tinham cursado Filosofia. Todos eles, desde Sílvio Romero, Tobias

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Barreto até Clóvis Beviláqua e Artur Orlando eram autodidatas em Filosofia e, se atingiram respeitável posição na História das Ideias Filosóficas, foi...

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