(Con)figurações do historiador em um tempo marcado pela disrupção tecnológica

AutorBruno Grigoletti Laitano
Páginas170-186
Esboços, Florianópolis, v. 27, n. 45, p. 170-186, maio/ago. 2020.
ISSN 2175-7976 DOI https://doi.org/10.5007/2175-7976.2020.e67217 171/345
RESUMO
O presente artigo tem por objetivo observar algumas das práticas que podem ser incorporadas pelos
historiadores ante as possibilidades da chamada “era digital”. Analisamos, em parte, a relação das
ciências humanas com os computadores, entendendo-a como um exercício de entusiasmo e de
conservação, na medida em que as tecnologias são tomadas ora como uma potência de futuro, ora
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pressões sofridas pela disciplina histórica e o consequente anseio por se atualizar, tendo em vista o
recente estudo de Valdei Araujo e Mateus Pereira acerca do “atualismo”. A disrupção tecnológica parece
estar formando novas identidades para a história e para os historiadores, sendo capaz de alargar as
suas fronteiras e reinventar as suas tradições. Projetos criados para a internet, por exemplo, de canais
no YouTube a podcasts     
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de novos campos ou movimentos teóricos, como são os casos das humanidades digitais e da história
digital. Há razão em circunscrever o digital em limites disciplinares? Argumentamos que as recriações
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devem inspirar a imaginação histórica, estando sempre desprendidas dos imperativos da disciplina.
PALAVRAS-CHAVE
História Digital. Humanidades digitais. Novas tecnologias.
ABSTRACT
This article seeks to examine some practices that can be incorporated by historians considering the
possibilities of the digital age. We analyze, on the one hand, the linkage between humanities and
computers, understanding it as an exercise of enthusiasm and conservation, as far as technologies
are either approached as future possibilities or held responsible for the dissolution of our professional
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consequent desire for being updated, in view of a recent study by Valdei Araujo and Mateus Pereira
regarding “updatism”. Technological disruption seems to be shaping new identities for history and
historians, while enlarging the frontiers of the history and reinventing its traditions. Internet projects,
for example, from YouTube channels to podcasts, are emerging as new outlets for professional action
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Is there any reason to restrict the digital sphere to disciplinary boundaries? We argue that digital re-
creations of the past, stimulated by highly sophisticated technologies, must inspire historical imagination,
while remaining always untied to disciplinary imperatives.
KEYWORDS
Digital History. Digital humanities. New technologies.
Esboços, Florianópolis, v. 27, n. 45, p. 170-186, maio/ago. 2020.
ISSN 2175-7976 DOI https://doi.org/10.5007/2175-7976.2020.e67217 172/345
Bruno Grigoletti Laitano
Em um encontro casual com velhos amigos, parcerias semanais de uma boa
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internet. “Vocês devem estar pirando, né?”, ouvi enquanto reparava a fumaça
do quentão irromper na panela fervente. A interrogação me pegou de surpresa e
rendeu uma longa discussão, sobre a qual voltarei mais adiante. Terminado o ensino
médio, cada um dos meus companheiros seguiu um caminho diferente, das exatas
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cursos, nossa satisfação (ou não) com escolhas tomadas no calor da formatura, das
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sei se para evitar demonstrações de desgosto com a minha opção, defendê-la diante
de pessoas que decidiram seguir trajetórias de maior prestígio, por áreas de grande
notoriedade, enquanto eu, que sempre conquistei as melhores notas entre o meu
grupo, agora estou preso em um mundo de incerto sucesso, quase sempre fadado
aos baixos salários e ao desprezo do poder público. Evito tornar esse sentimento de
injustiça uma evidência, e apenas revido com a mesma dúvida: “E tu, tá gostando
das tuas aulas?”. Acontece que, na ocasião que descrevi logo nas primeiras linhas,
a conversa surgiu de outra forma. Já não queriam saber se eu estava me divertindo
com algumas centenas de páginas de textos pouco atraentes, mas como eu e meus
colegas de curso observamos o fenômeno da internet. Pela primeira vez em tantos
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poderia ser a mesma de sempre, não seria sensato dizer que estava tudo bem, “nem
pensamos muito sobre o assunto”, “isso aí não é conosco”, “sim, tô curtindo o curso”. A
discussão se estendeu por alguns bons minutos, o que nos obrigou a comer os restos
gelados do jantar, quase inteiramente devorado por aqueles que, conscientemente ou
não, se abstiveram da conversa que monopolizava a cozinha. Não saberia dizer se
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mas, já nas últimas gotas de saliva, o debate lentamente arrefecendo, pensei comigo
mesmo que aquela conversa poderia virar um artigo. As páginas seguintes são, pois,
uma tentativa de transformá-la em um texto acadêmico, com a infeliz ressalva de que
o leitor não poderá acompanhá-lo com a cerveja, o quentão e os salgadinhos que
energizavam o nosso palavratório.
§
Certa feita, em meio a tilintares e conversas paralelas do congresso anual da
American Historical Association, um famoso historiador pregou a sua tese para o futuro
da disciplina. De acordo com Anthony Grafton (2014), em uma curta entrevista para
a History News Network, canal da Universidade George Mason no YouTube, a nova
geração de historiadores será obrigada a incorporar competências informacionais.
Deverá dominar códigos e linguagens de programação, e poderá perder o contato com
fontes materiais, na medida em que passará a produzir livros em formato e plataformas
digitais. Para Grafton, um intelectual da “velha guarda”, professor universitário desde
os anos 1970, os novos tempos exigirão da história a capacidade de se adaptar ao
digital, habilidade que não fazia parte do repertório curricular que o formou há algumas
boas décadas. Apesar da ênfase, Grafton não é o primeiro historiador a idealizar um
futuro digital para a disciplina. Em 1968, na revista Le Nouvel Observateur, o francês
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