Fidelidade partidária - desfiliação - perda de mandato eletivo

AutorAmaury Silva
Ocupação do AutorJuiz Eleitoral no Estado de Minas Gerais. Professor na área jurídica - Graduação e Pós-Graduação
Páginas323-353

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A fidelidade partidária é tema atual e motivo de intensos debates, não só no ambiente do direito eleitoral, mas nos mais diversos setores políticos, presente ainda como indispensável tópico de análise quando se reflete acerca da ética e probidade na condução da política, fortalecimento de partidos políticos e participação popular. Com efeito, o mandato eletivo, como instrumento da democracia representativa, funciona como verdadeira joia na distribuição do mando e do poder político, por isso, alvo de enorme interesse no seu controle e apossamento. Enfim, o mandato pertence ao partido ou ao candidato? A fidelidade partidária seria assim o compromisso inarredável de aquele mandatário eleito sob determinada legenda permanecer a ela vinculado durante todo o período do exercício do mandato, permitindo-se o desfazimento do vínculo apenas em casos justificados pelas circunstâncias.

O consenso em torno do assunto parece difícil e distante. Se por um lado o sistema eleitoral brasileiro pressupõe um berço ideológico e programático a partir do alinhamento entre o pretendente ao exercício do encargo eletivo e a estrutura partidária, não se pode desmerecer uma perspectiva de subjetividade entre eleitor e escolhido que transcende a roupagem partidária. O mandato na verdade tem dúplice gênese, representa uma agregação do elemento de organização social e política representada pela agremiação partidária, e a modulação sinérgica da pessoalidade do homem candidato.

O equilíbrio para se deliberar acerca dessa equação parece ser mais fácil de ser obtido com a criação de uma regra geral de condensação dos interesses do mandatário e do partido, ou seja, o prestígio da fidelidade partidária, mas não absoluta, e sim permeada por certa flexibilidade, possibilitando a quebra dos laços, mediante condições e motivos ponderadamente justificáveis.

A fidelidade partidária surge no planto constitucional com a referência do art. 149, Constituição Federal de 1967, que recomendava

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aos partidos políticos se submeterem à regência da lei, observando-se a disciplina partidária. Com a Emenda Constitucional n. 1/69 sua aparição se tornou mais nítida, com a previsão de perda do mandato no art. 152, parágrafo único, em relação aos parlamentares que não cumprissem as diretrizes partidárias ou deixassem a legenda pela qual chegaram a ser eleitos, mediante processo perante a Justiça Eleitoral, com observância do contraditório e ampla defesa.

Mais adiante, a Emenda Constitucional n. 11/78 criou, como exceção à perda do mandato pela desfiliação, a saída motivada pela participação como fundador na constituição de novo partido político. Em 1985, a Emenda Constitucional n. 25 suprimiu o tratamento constitucional sobre a fidelidade partidária.

Sua aparição surge no cenário da Constituição de 1988, remetendo aos partidos que estabelecessem em seus estatutos as normas disciplinares a respeito da fidelidade partidária - art. 17, § 1º, CF. Reduziu o Texto Constitucional de maneira drástica a perspectiva de perda de mandato por infidelidade partidária, pois as hipóteses de perda de mandato (art. 55, CF) não contemplam a sua incidência.

A Lei 9.096/95 restringe a atuação do mandatário à esfera inter-na do partido, não estabelecendo hipótese de perda de mandato, como não poderia de resto fazê-lo, em respeito à hierarquia constitucional. Em síntese, no arcabouço normativo constitucional ou infraconstitucional, não há possibilidade de perda de mandato por infidelidade partidária. As penalidades estabelecidas pela Lei dos Partidos Políticos não engloba a perda do mandato eletivo.

A propósito, ensina Clemerson Merlin Cleve:

O fato de, no sistema constitucional brasileiro contemporâneo, o parlamentar não perder o mandato em virtude de filiação a outro partido ou em decorrência do cancelamento da filiação por ato de infidelidade é eloqüente. Ainda que, doutrinariamente, o regime do mandato possa sofrer crítica, é induvidoso que, à luz do sistema constitucional em vigor, o mandato não está à disposição do partido. (In: Fidelidade Partidária - estudo de caso. Curitiba, Juruá, 1998, p. 29).

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A ausência de um regramento estável na ordem jurídica constitucional e eleitoral sobre a questão da fidelidade partidária, o que só poderia ser materializado depois de uma reforma política, cujas condições ideais para discussão e aprovação dependem de uma série de injunções na agenda nacional, tornou-se uma tormentosa indefinição, levando à insegurança jurídica. A solução encontrada pelo Tribunal Superior Eleitoral foi disciplinar a matéria, atuando no vácuo legislativo, buscando uma harmonização no tratamento do assunto.

Com isso, a Resolução n. 22.610/2007 - TSE disciplinou a questão da fidelidade partidária no Brasil, seguindo em suma a confluência da jurisprudência do STF.

Seria constitucional, ante a perspectiva de invasão de atribuições do Poder Legislativo, a normatização da questão pelo Poder Judiciário Eleitoral?

Modestamente reputamos que sim. De forma nenhuma o assunto pode ser inserido na atuação regulamentar ou complementar conferida à Justiça Eleitoral - art. 23, XVIII, Código Eleitoral. A resolução se reveste de maneira ostensiva de uma espécie normativa autônoma e independente, à míngua da mora legislativa em disciplinar a temática.

Mas, o Supremo Tribunal Federal entendeu de maneira diferente, escoimando de qualquer vício a indigitada Resolução:

"EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. RESOLUÇÕES DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL 22.610/2007 e 22.733/2008. DISCIPLINA DOS PROCEDIMENTOS DE JUSTIFICAÇÃO DA DESFILIAÇÃO PARTIDÁRIA E DA PERDA DO CARGO ELETIVO. FIDELIDADE PARTIDÁRIA. 1. Ação direta de inconstitucionalidade ajuizada contra as Resoluções 22.610/2007 e 22.733/2008, que disciplinam a perda do cargo eletivo e o processo de justificação da desfiliação partidária. 2. Síntese das violações constitucionais argüidas. Alegada contrariedade do art. 2º da Resolução ao art. 121 da Constituição, que ao atribuir a competência para examinar os pedidos de perda de cargo eletivo por infidelidade partidária ao TSE e aos Tribunais Regionais

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Eleitorais, teria contrariado a reserva de lei complementar para definição das competências de Tribunais, Juízes e Juntas Eleitorais (art. 121 da Constituição). Suposta usurpação de competência do Legislativo e do Executivo para dispor sobre matéria eleitoral (arts. 22, I, 48 e 84, IV da Constituição), em virtude de o art. 1º da Resolução disciplinar de maneira inovadora a perda do cargo eletivo. Por estabelecer normas de caráter processual, como a forma da petição inicial e das provas (art. 3º), o prazo para a resposta e as conseqüências da revelia (art. 3º, caput e par. ún.), os requisitos e direitos da defesa (art. 5º), o julgamento antecipado da lide (art. 6º), a disciplina e o ônus da prova (art. 7º, caput e par. ún., art. 8º), a Resolução também teria violado a reserva prevista nos arts. 22, I, 48 e 84, IV, da Constituição. Ainda segundo os requerentes, o texto impugnado discrepa da orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal nos precedentes que inspiraram a Resolução, no que se refere à atribuição ao Ministério Público eleitoral e ao terceiro interessado para, ante a omissão do Partido Político, postular a perda do cargo eletivo (art. 1º, § 2º). Para eles, a criação de nova atribuição ao MP por resolução dissocia-se da necessária reserva de lei em sentido estrito (arts. 128, § 5º e 129, IX da Constituição). Por outro lado, o suplente não estaria auto-rizado a postular, em nome próprio, a aplicação da sanção que assegura a fidelidade partidária, uma vez que o mandato "pertenceria" ao Partido.) Por fim, dizem os requerentes que o ato impugnado invadiu competência legislativa, violando o princípio da separação dos poderes (arts. , 60, §4º, III da Constituição). 3. O Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento dos Mandados de Segurança 26.602, 26.603 e 26.604 reconheceu a existência do dever constitucional de observância do princípio da fidelidade partidária. Ressalva do entendimento então manifestado pelo ministro-relator. 4. Não faria sentido a Corte reconhecer a existência de um direito constitucional sem prever um instrumento para assegurá-lo.

  1. As resoluções impugnadas surgem em contexto excepcional e transitório, tão-somente como mecanismos para salvaguardar a observância da fidelidade partidária enquanto o Poder Legislativo, órgão legitimado para resolver as tensões típicas da matéria, não se pronunciar. 6. São constitucionais as Resoluções 22.610/2007 e 22.733/2008 do Tribunal Superior Eleitoral. Ação direta de inconstitucionalidade conhecida, mas julgada improcedente." (ADI 3999 / DF - DISTRITO FEDERAL - AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA - Julgamento: 12/11/2008 - Órgão Julgador: Tribunal Pleno - Publicação DJe-071 - DIVULG 16-04-2009 - PUBLIC 17-04-2009)

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    Não obstante o reconhecimento da indevida intromissão na matéria, pelo poder regulamentar excessivo do Judiciário, em desrespeito ao princípio da legalidade, evidentemente que o assunto exigia solução urgente em apontamentos normativos. Dessa forma, a fidelidade partidária com a repercussão de perda de mandato eletivo tem seu tratamento normativo pela Resolução 22.610/2007 - TSE.

    A Resolução faz a previsão de duas ações que envolvem a matéria da perda do mandato e fidelidade partidária. A primeira se destaca como a iniciativa do partido em obter o provimento jurisdicional da perda do cargo eletivo pelo mandatário que efetivar a desfiliação...

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