(In)fidelidade partidária, democracia e jurisdição constitucional: O STF como fiscal do processo político

AutorRodrigo Naumann
Páginas1-42
RDM REVISTA DE DIREITO DOS MONITORES DA UFF
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(IN)FIDELIDADE PARTIDÁRIA, DEMOCRACIA E JURISDIÇÃO
CONSTITUCIONAL: O STF COMO FISCAL DO PROCESSO POLÍTICO.
Sumário: I. Introdução. II. Democracia representativa e fidelidade partidária. III.
Fidelidade partidária na doutrina e na jurisprudência: do formal ismo pretérito ao
particularismo presente. IV. Para além da hermenêutica constitucio nal: o STF como
instituição de reforço do processo de mocrático. V. O mérito da decisão: afinal, de quem é o
mandato político no Brasil? VI. Conclusão. VII. Referências bibl iográficas.
Resumo: Em outubro de 2007, o Supremo Tribunal Federal b rasileiro indiscutivelmente
assumiu uma posição de grande vulto no cenário político do nosso país. Em sede de três
mandados de segurança impetrados pelos par tidos DEM (antigo PFL), PPS e PSDB, os
ministros do Supremo Tribunal decidiram que, nos pleitos proporcionais, o mandato
eleitoral pertence ao partido político, de tal sorte que, se o parlamentar a este filiado mudar
de agremiação depois de eleito - sem um justo motivo - perderá o direito de o cupar a vaga a
que até então fazia jus. Mais do que uma mera decisão pontual envolvendo a interpretação
mais adequada da Constituição, a definição sobre o pertencimento do mandato é
sintomática de um fenômeno global: a expansão da atividade e da autoridade do Poder
Judiciário sobre uma gama de variadas questões que repercutem consideravelmente sobre a
vida social e política. De forma simplificada, o fenômeno é rotulado de “judicialização da
política e das relações sociais”. É neste contexto de atuação mais incisiva do Poder
Judiciário que se deve analisar a histórica decisão do Supremo Tribunal federal, não só para
analisar as suas verdadeiras possibilidades institucionais para a fiscalização d o processo
político, como também para traçar os limites de um ativis mo democraticamente
comprometido.
Palavras-chave: Jurisdição constitucional, democracia, fidelidade partidária,
procedimentalismo, hermenêutica constitucional, formalismo, particularismo, capacidades
institucionais.
Abstract: In October 2007, the Brazilian Supreme Court undoubtedly took a position as a
major figure in the political landscape of our country. Prompted by three mandamus filed
by the parties DEM (former PFL), PPS and PSDB, the Supreme Court Justices decided that
in proportional elections, the electoral mandate belongs to the political party, so that, if
candidates switch their parties after the election without a good reason they lose the
right they were previously entitled. More than a mere ad hoc decision involving the mo st
appropriate interpretation of the Constitution, that decision was symptomatic of a global
phenomenon: the e xpansion of activity and authority of t he judiciary on a range of diverse
issues that impact significantly on the social and political life. That is the so called
“judicialization of politics and social life”. It is in this context that one must analyze the
Brazilian Supreme Court 2007 decision, assessing the real possibilities for the court’s
oversight of the political process, and also charting the b oundaries of a democratically
committed activism.
Keywords: judicial review, representative democracy, party lo yalty, constitutional
interpretation, formalism, particularism, institutional capacities.
I. Introdução.
Em outubro de 2007, o Supremo Tribunal Federal indiscutivelmente assumiu uma
posição de grande vulto no cenário político brasileiro. Em decisão histórica,
1 tomada em sede
1 Nas palavras d o Min. Gilmar Mendes, se penso em dez decisões emblemáticas do Supremo Tribunal Federal,
não consigo excluir essa decisão no contexto de 1988. Realmente uma decisão que preserva a democracia no
Brasil. Uma decisão verdadeiramente histórica. Talvez ela estej a entre as cinco mais importantes deste período
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de três mandados de segurança impetrados pelos partidos DEM (antigo PFL), PPS e PSDB,
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os ministros do Supremo Tribunal entenderam que, nos pleitos proporcionais, o mandato
eleitoral pertence ao partido político, de tal sorte que, se o parlamentar a este filiado mudar de
agremiação depois de eleito - sem um justo motivo - perderá o direito de ocupar a vaga a que
até então fazia jus.
O debate político e judicial sobre a fidelidade partidária foi desencadeado pelo
Partido da Frente Liberal (PFL), hoje Democratas (DEM), ao formular ao Tribunal Superior
Eleitoral a Consulta nº 1.398/DF, rel. Min. Ministro César Asfor Rocha. A indagação era a
seguinte: “Os partidos e coligações têm o direito de preservar a vaga obtida pelo sistema
eleitoral proporcional, quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de transferência
do candidato eleito por um partido para outra legenda?”. O Tribunal Superior Eleitoral, na
sessão de 27 de março de 2007, respondeu positivamente à supracitada Consulta, em
pronunciamento assim ementado: “Consulta. Eleições proporcionais. Candidato eleito.
Cancelamento de filiação. Transferência de partido. Vaga. Agremiação. Resposta afirmativa”
(Resolução 22.526/2007).3
Com base em tal entendimento, o Partido Popular Socialista (PPS), o Partido da
Social Democracia Brasileira (PSDB) e o Democratas (DEM) impetraram mandados de
segurança perante o Supremo Tribunal Federal, contra decisão do Presidente da Câmara dos
Deputados, que indeferiu requerimentos formulados pelas referidas agremiações. Os partidos
postulavam fosse declarada a vacância dos cargos dos Deputados Federais que haviam
mudado de filiação partidária após as eleições de 2006.
Rompendo com seu entendimento histórico4 quanto aos efeitos da desfiliação
partidária por parlamentares eleitos, o Supremo Tribunal Federal, por maioria, confirmou a
tese esposada pelo Tribunal Superior Eleitoral na Consulta nº 1.398/DF. Desse modo, nos
de 88”. Trecho do voto do Min. Gilmar Mendes na ADI nº 3.999/DF, rel. Min. Joaquim Barbosa, Tribunal
Pleno, j. 12/11/2008, DJe-071 de 16/04/2009.
2 Brasil, STF, MS nº 26.602/DF, rel. Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, j. 04/10/2007, DJe-197 de 16/10/2008;
Brasil, STF, MS nº 26.603/DF, rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, j.04/10/2007, DJe-241 de 18/12/2008;
Brasil, STF, MS nº 26.604/DF, rel. Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, j. 04/10/2007, DJe -187 de 02/10/2008.
3 Brasil, TSE, Consulta nº 1398, Resolução nº 22.526 de 27/03/2007, rel. Min. Cesar Asfor Rocha, DJ de
08/05/2007, p. 1 43. Os argumentos desenvolvidos na fundamentação da resposta à Consulta nº 1.398//DF serão
abordados ao longo do trabalho.
4 STF, MS nº 23.405/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, j. 22/0 3/2004, DJ de 23/04/2004: “Mandado
de Segurança. 2. Eleitoral. Possibilidade de perda de mandato parlamentar. 3. Princípio da fidelidade partidária.
Inaplicabilidade. Hipótese não colocada entre as causas de perda de mandado a que alude o art. 55 da
Constituição. 4. Controvérsia que se refere a Legislatura encerrada. Perda de objeto. 5. Mandado de Segurança
julgado prejudicado”. No mesmo sentido, cf. MS nº 20.927/DF, rel. Min. Moreira Alves, Tribunal Pleno,
j.11/10/1989, DJ de 15/04/1994; MS nº 20.916/DF, rel. Min. Carlos Madeira, rel. p/ acórdão Min. Sepúlveda
Pertence, Tribunal Pleno, j. 11/10/1989, DJ de 26/03/1993.
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pleitos proporcionais, o mandato passou a ser de titularidade do partido e a mudança de
agremiação sem justa causa a ensejar a perda do cargo no Legislativo.
Uma questão, porém, ainda ficava em aberto: os cargos eletivos preenchidos pelo
sistema majoritário.
5 Não tardou para que a indagação fosse levada ao TSE. Em resposta à
Consulta nº 1.407/2007,6 o Tribunal Superior Eleitoral, por unanimidade, entendeu que
também nos pleitos majoritários aplicar-se-ia a regra da fidelidade partidária.
Essa conclusão, porém, não foi expressamente referendada pelo Supremo Tribunal
Federal. Nada obstante, o TSE, invocando o entendimento do Supremo Tribunal Federal nos
mandados de segurança nº 26.602, 26.603 e 26.604, editou a Resolução 22.610/2007, de
modo a disciplinar o processo de perda de cargo eletivo, bem como de justificação de
desfiliação partidária.
A Resolução, então, fixou referido procedimento, esclarecendo questões como (i) a
legitimidade para instauração do processo,7 (ii) os motivos legítimos para desfiliação,8 (iii) o
órgão juridicional competente para apreciar os requerimentos,9 (iv) os requisitos formais
necessários para instrução do pedido,10 (v) os prazos para prática de atos processuais,11 (vi) os
efeitos da decisão, bem como os recursos em face dela cabíveis.12
5 No Brasil, esse sistema é utilizado na eleição de Prefeitos (CRFB, art . 29, I), Governadores (CRFB, art. 28,
caput), Senadores (CRFB, art. 46, caput) e do Presidente da República (CRFB, art. 77, §2º).
6 A consulta foi formulada pelo deputado Nilson Mourão (PT-AC) e indagava a seguinte questão: "os partidos e
coligações têm o direito de preservar a vaga obtida pelo sistema eleitoral majoritário, quando houver pedido de
cancelamento de filiação ou de transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda?".
7 A Resolução esclareceu que o partido político é parte legítima para requerer a declaração de vacância do
parlamentar trânsfuga (art. 1º, caput), desde que a mudança de agre miação não tenha decorrido de justa causa
(art. 1º, §1º). Caso esta se configure, poderá o mandatário, ele próprio, requerer a declaração de motivo idôneo
para desfiliação do partido de origem (art. 1º, §3º), evitando, assim, a perda do mandato. Quando o partido
político não formular o pedido dentro de 30 (trinta) dias da desfiliação, pode fazê-lo, em nome próprio, nos 30
(trinta) subsequentes, quem tenha interesse jurídico ou o Ministério Público eleitoral (art. 1º, § 2º).
8 Considera-se justa causa para desfiliação partidária (art. 1º, §2º): (i) incorpo ração ou fusão do partido; (ii)
criação de novo partido; (iii) mudança substancial ou d esvio reiterado do programa partidário; (iv) grave
discriminação pessoal.
9 O Tribunal Superior Eleitoral é competente para processar e julgar pedido relativo a mandato federal; nos
demais casos, é competente o tribunal eleitoral do respectivo estado (art. 2º).
10 Na inicial, expondo o fundamento do p edido, o requerente juntará prova documental da desfiliação, podendo
arrolar testemunhas, até o máximo de 3 (três), e requerer, j ustificadamente, outras provas, inclusive requisição de
documentos em poder de terceiros ou de repartições públicas (art. 3º).
11 O prazo d e resposta do mandatário que se desfiliou e do eventual partido em que esteja inscrito é de 5 (cinco)
dias, contado s do ato da citação (art. 4º). Decorrido o prazo de resposta, o tribunal ouvirá, em 48 (qu arenta e
oito) horas, o representante do Ministério P úblico. (art. 6º). Para o julgamento, antecipado ou não, o Relator
preparará voto e pedirá inclusão do processo na pauta da sessão seguinte, observada a antecedência de 48
(quarenta e oito) horas. É facultada a sustentação oral por 15 (quinze) minutos (art. 9º). O processo deverá
encerrar-se no prazo de 60 (sessenta) dias (art. 12).
12 Julgando procedente o pedido, o tribunal decretará a perda do cargo, comunicando a decisão ao presidente do
órgão legislativo competente para que emposse, conforme o caso, o suplente ou o vice, no prazo de 10 (dez) dias
(art. 10). São irrecorríveis as decisões interlocutórias do Relator, as quais poderão ser revistas no julgamento
final, de cujo acórdão cabe o recurso previsto no art. 121,§ 4º da Constituição da Repúblic a (art. 11).

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