Fiction and Fabulation: law and politics on the societies of control/ Ficcao e fabulacao: o direito e a politica nas sociedades de controle.

AutorCorrea, Murilo Duarte Costa
CargoTexto en portugues - Ensayo

Introducao

O conceito de estado excecao foi objeto de uma recente e profunda difusao, a partir da renovacao teorica e pratica que conheceu atraves da publicacao do primeiro volume do Homo Sacer, de Giorgio Agamben (2007). Ao longo dos ultimos vinte anos, essa categoria tornou-se ponto de passagem necessario a discussao das formas contemporaneas de exercicio de poder--o que se deve tanto a intensificacao das estrategias macropoliticas das quais seus dispositivos participam quanto a reconfiguracao do aparato conceitual que permitira apresenta-lo como uma especie de campo paradigmatico em que direito, poder e vida permanecem enodados a servico de estrategias biopoliticas. Desde entao, acompanhar o desenvolvimento do desafio a que Agamben se lancara--repensar a conexao entre ontologia e praxis politica a partir de uma forma-de-vida imanente apenas a si mesma--parece ter se tornado uma atividade comum a pesquisadores de areas tao diversas quanto as artes, as ciencias sociais e juridicas, a filosofia ou a teoria politica, por exemplo.

No entanto, a assuncao do ponto de vista de Agamben implica a adocao insidiosa de certas premissas que seus intercessores tentaram trazer a luz. Jacques Ranciere (2000) percebera que Agamben pensara o aniquilamento dos judeus nos campos de exterminio como consequencia da relacao entre biopoder e vida, compreendida como conteudo essencial da soberania e da sacralidade. A insistencia em tratar o biopoder como um modo de exercicio da soberania significaria lancar o primeiro a um terreno onto-teologico-politico e reduzir a politica a uma questao de poder. Antonio Negri desafiara a aura totalizante que a excecao soberana parece obter na medida em que Agamben confere ao campo o estatuto de paradigma topologico da modernidade. Negri (2008, p. 51) nao apenas nega a identificacao entre excesso e excecao--reservando a primeira categoria uma clara filiacao as possibilidades de resistencia biopolitica ao biopoder--, como nao admite que a excecao produza um poder absoluto no nivel dos aparelhos estatais, descolado das resistencias que se encontram nos seus antipodas, embora reconheca que o estado de excecao possa ser representado como tal.

A reducao da politica ao poder, a constituicao de um terreno ontoteologico-politico que mantem o traco de uniao entre soberania e vida, e a representacao talvez friavel de um poder absoluto, co-originarios ao estado de excecao, implicam representar o direito e a politica geralmente de maneira dual, em que se passa da critica ao estado de excecao a uma arqueologia da potencia (Castro, 2012 p. 75-90 e p. 165-184) que nao destroi a lei, mas a desativa. Ora o direito encontra-se sob o signo da indeterminacao--o direito nao mais praticado, convertido em objeto de um jogo estudioso (Agamben, 2003), ou a politica como acao profanatoria (Agamben, 2008) compreendida como contradispositivo capaz de liberar o Ingovernavel, a "forma-de-vida" (Agamben, 1996 e 2011) ou a potencia de nao (Agamben, 2005) mobilizados em torno de uma politica e de uma comunidade que vem--, ora o direito se converte em instrumento de operacoes de excecao para as quais a politica se torna um antidoto arriscado, ao menos enquanto o biopoder fizer da vida o alvo privilegiado de sua propria excecao (cf. Agamben, 2000, p. 178-192 e Correa, 2013, p. 304-316).

Talvez seja possivel liberar Agamben das armadilhas dessas leituras duais caso encaremos os atributos de que o direito e a politica sao cumulados pelo estado de excecao sob a qualidade de uma disjuncao inclusiva. O problema reside na ambiguidade de compreender que direito e politica possam constituir ora elementos de liberacao, ora pontos de articulacao capitais da soberania e do biopoder. A hipotese em que pretendemos avancar consiste em nao mais compreender as relacoes entre o direito e a politica exclusivamente sob o signo da desativacao potente ou puramente como campos de significado para operacoes de excecao; trata-se de nos darmos ao trabalho de pensa-los na impureza de uma imanencia confusa, indeterminada e reciproca, pontilhada por operacoes concretas de excecao, estimando como se desenvolvem ai seus potenciais de assujeitamento e de resistencia. Todavia, isso so e possivel se compreendermos o estado de excecao simultaneamente como paradigma de governo (logica estrutural na qual nos movemos por regra) e como a ponta mais extrema de operacoes singulares (Hardt, 2000, p. 357). Entao, corremos o risco de ressignificar o direito, a politica e as relacoes reciprocas que estes estabelecem nas sociedades de controle, em que as suspensoes excepcionais das regras gerais tornam-se tao eficazes quanto a constituicao de regulamentos moveis para permitir a modulacao dos acontecimentos; em que a excecao torna-se tanto um paradigma de governo, ou uma logica estrutural, quanto uma tecnologia a servico dos controles.

  1. Sociedades de controle

    O advento das tecnologias de controle traduz um dos ultimos deslocamentos que atestam a inadequacao pragmatica em explicar os fenomenos de poder segundo a "hipotese repressiva" (Foucault, 2009, p. 29). Ao se definirem segundo uma anatomo-politica, as sociedades disciplinares, situadas por Foucault entre os seculos XVIII e XIX, ja antecipavam a esclerose das sociedades de soberania. A cada formacao social correspondem objetivos e funcoes diferentes, para os quais convergem estrategias e dispositivos heterogeneos. No entanto, assim como o advento das sociedades de controle nao acarreta o completo desaparecimento das tecnicas disciplinares--mas, antes, a integracao de alguns de seus dispositivos a uma nova tessitura de poderes e resistencias--, o advento das sociedades disciplinares nao apaga definitivamente os mecanismos juridicos ou as instituicoes politicas que, entre os seculos XVI e XVII, deram aos Estados soberanos suas feicoes modernas. Uma logica propria rege cada formacao social e quando uma formacao sucede a outra trata-se sempre de uma sucessao por interpenetracao e contagio.

    As sociedades de soberania estabeleceram-se economicamente sobre a possibilidade de extorquir a producao, mais do que organiza-la, e sobre o soberano direito de morte sobre os suditos (Foucault, 2009, p. 147-149; Deleuze, 2008 p. 219). Ao lado do espetaculo dos suplicios, o direito de matar torna-se o organizador de todo o sistema juridico de penalidades.

    Os suplicios exerciam-se sobre o corpo do condenado. Suas marcas eram a exemplaridade e o espetaculo, ministrados segundo a necessidade descontinua de inscrever o suplicio, a crueldade e a dor em uma duracao capaz de tornar-se a memoria significativa da lei. A pena soberana coincide com a producao ritual de um sistema de signos: o corpo supliciado como signo material da lei; a memoria do suplicio como signo imaterial da lei; a duracao lenta do suplicio e o local do crime como esteios espaco-temporais de sua efetuacao (Foucault, 1999 p. 39-40). Suplicio justificado por razoes politicas, na medida em que o crime e interpretado como um ataque contra o soberano, contra sua vontade--cuja expressao e a lei-e contra seu corpo, pois a forca da lei coincide com a forca do principe.

    Eis por que o sistema de penalidades importa para definir a logica do exercicio de poder nas sociedades de soberania: a pena aparece como um derivado do soberano direito de fazer guerra aos seus inimigos (Hobbes, 2002, p. 105); internamente, esse direito assume a feicao do Direito Penal, que manifesta, na dinamica ritual do suplicio, a sua funcao juridico-politica (Foucault, 1999, p. 4142): produzir um sistema de signos em um corpo, inscreve-lo segundo uma duracao tao lenta quanto atroz; forjar, por meio dos afetos do terror e do medo, uma memoria geral da lei; repetir descontinuamente tais espetaculos para renovar sua vis.

    Na epoca classica, esses mecanismos de poder sofrem deslocamentos significativos: o confisco dos bens, produtos, servicos e trabalho dos suditos perde sua centralidade em favor de novos instrumentos de controle, vigilancia e organizacao das forcas produtivas. O corpo supliciado desaparece progressivamente e, ao perder sua aura espetacular, a execucao da pena se converte em um ato burocratico no qual a violencia ligada ao exercicio cotidiano da justica se dissimula sob a forma de sua consciencia abstrata (Foucault, 1999 p. 13). Entao, o soberano direito sobre a vida e a morte dos suditos sobrevivera como o complemento de uma nova logica que comecava a instaurar-se: o biopoder.

    A partir do seculo XVII, o poder sobre a vida estende-se por meio de duas formas heterogeneas e nao-antagonicas: uma anatomo-politica do corpo humano e uma biopolitica das populacoes. Dispositivos disciplinares e mecanismos de seguranca tem em comum a caracteristica de investirem a totalidade da vida; a diferenca relativa que os percorre provem das distincoes estrategicas e de alcances que se interpenetram como funcoes correlatas de uma forma de governamentalidade que se assenhora da totalidade dos fenomenos organicos em escalas variaveis.

    As disciplinas exercem-se sobre os corpos individuais em espacos de confinamento segundo uma temporalidade descontinua e cronologicamente estabelecida; seus objetivos sao adestra-los, aumentar suas aptidoes, mas tambem subtrair suas forcas de sedicao e resistencia, a fim de constituir ganhos de utilidade e docilidade, integrando-os a sistemas de producao providos de controles eficazes (Foucault, 2009, p. 151). Foucault faz da prisao o modelo analogico dos demais meios de confinamento--familia, escola, caserna, fabrica, hospital (Deleuze, 2008 p. 219). Trata-se de outro espaco, nao mais exclusivamente negativo--como o cadafalso ao qual se subia para perder a vida--, mas interior ou fechado, em que se exerce um poder positivo e fabril, que produz uma alma como efeito subjetivo das sujeicoes infinitesimais depositadas no corpo.

    Ainda que as disciplinas tambem tivessem por centro o corpo individual, ja nao se tratava do corpo condenado, mas do corpo a ser "moldado" por um sistema de...

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