Déficit Político do Poder Judiciário

AutorRoberto Basilone Leite
Ocupação do AutorJuiz do Trabalho em Santa Catarina, Mestre e Doutor em Filosofia e Teoria do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e Vice-Diretor da Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho de Santa Catarina
Páginas173-261

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Para analisar se o Poder Judiciário brasileiro padece de um déficit político institucional estrutural é preciso avaliar se e em que medida o Judiciário brasileiro deixa de cumprir seu papel institucional. Cabe inicialmente ressaltar que o que se tem no Brasil é um déficit de tipo estrutural, em oposição ao conceito de déficit conjuntural. Ambos se referem à situação em função da qual o aparato Judiciário não consegue desempenhar razoavelmente suas funções institucionais; contudo, déficit conjuntural é aquele por força do qual o judiciário está episódica e temporariamente impedido de desempenhar seu papel democrático por imposição de algum fator real de poder – como, por exemplo, um programa autoritário episódico que se instale sobre o alicerce de uma sociedade democrática e se mantenha em vigor durante certo período, impedindo pela violência que os mecanismos judiciários existentes atuem. Um exemplo: o USA Patriot Act,1 aprovado pelo Congresso dos Estados Unidos em 24 de outubro de 2001 e assinado pelo Presidente da República George W. Bush dois dias depois, como resposta ao ataque ao World Trade Center ocorrido em 11 de setembro de 2001, dentre outras medidas autoriza o FBI a monitorar telefonemas e mensagens de e-mail e a compelir governos locais e estaduais a prestar informações sigilosas, inclusive de natureza médica e educacional, sobre qualquer cidadão, mediante simples alegação de que tais medidas interessam às investigações. Essa norma dotou o governo federal norte-americano do poder de acesso imediato e direto a um vasto campo de informações de caráter íntimo relativas a todo cidadão que utilize algum dos serviços mencionados. Muito embora essa lei pretendesse possibilitar o aumento da segurança contra ataques terroristas no país, por meio de restrições aos direitos de privacidade dos cidadãos

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nacionais e estrangeiros que por ali transitam, sua edição acendeu nos Estados Unidos o debate em torno de sua legitimidade e validade material, na medida em que o Patriot Act parece afrontar uma série de normas vigentes, tais como o Family Educational Rights and Privacy Act (Lei de direitos e privacidade educacional da família), de 1974; o Right to Financial Privacy Act (Lei do direito à privacidade financeira), de 1978; o Privacy Protection Act (Lei de proteção da privacidade), de 1980; o Debt Collection Act (Lei de cobrança de dívidas), de 1982; o Cable Communications Policy Act (Lei de política de comunicação a cabo), de 1984; o Video Privacy Protection Act (Lei de proteção da privacidade televisiva), de 1988 e o Children’s Online Privacy Protection Act (Lei de proteção da privacidade infantil na Internet), de 1998.

Já o Judiciário estruturalmente deficitário é aquele cujo próprio aparato físico e funcional não é apto para permitir que ele cumpra suas funções institucionais, seja por falência do sistema, seja por ter sido construído de modo inadequado para atuar no ambiente democrático. Cada uma das duas situações em tela conduzem a diferentes soluções: o saneamento do déficit estrutural depende de mudanças na organização e nas regras de funcionamento do poder.

Tratamos nos capítulos anteriores do conceito de democracia deliberativa e, com base na noção de esfera pública política, tentamos demonstrar que a sociedade brasileira não conheceu a vivência democrática até 1988. Em seguida, tentamos demonstrar que o Poder Judiciário brasileiro estruturou-se na forma de um aparato autoritário e começamos a delinear o papel normativo do Judiciário no contexto democrático. Neste capítulo, pretendemos evidenciar que o formato de Judiciário herdado do Estado autoritário brasileiro não tem condições de atender às funções judiciais típicas do modelo democrático. O papel político desempenhado pelo Judiciário não é a-histórico mas, ao contrário, cada tipo de regime político implica diferentes exigências em relação a esse ramo do poder; interessa, no âmbito deste estudo, definir os limites normativos do papel do Judiciário no modelo democrático deliberativo. Essa adequação do aparelho judiciário ao modelo democrático, que buscamos identificar com base no grau de eficácia de sua atuação, traz latente a ideia de sua capacitação para manter a integridade do regime democrático, e eis já o primeiro elemento importante concernente à dimensão normativa do conceito: Judiciário politicamente eficaz, ou não deficitário, é aquele que atua no sentido de contribuir para a manutenção do regime democrático.

Tal afirmação fica mais clara se cogitarmos uma situação um pouco mais complexa: se concebermos o Brasil de 2014 como um Estado pós-autoritário em transição para a democracia, que carrega o peso cultural de uma história social de cinco séculos de autoritarismo escravista e patrimonialista, o perfil normativo de Judiciário que traçaremos corresponderá ao papel que o aparato de justiça deve desempenhar no âmbito de uma democracia não consolidada de modo a contribuir para a consolidação do regime democrático. Em outras palavras, no Estado em transição do autoritarismo para a democracia, os juízes devem dar conta de determinadas

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funções de modo a contribuir não apenas para a preservação da integridade do regime democrático – que já não é pouco –, mas para que o regime caminhe do modelo transitório para o modelo democrático consolidado. As funções do juiz na sociedade democrática consolidada podem ser diferentes das funções do juiz na sociedade pós-autoritária que busca chegar à condição de democracia consolidada; neste segundo caso, as exigências em face do juiz são maiores.

No Estado democrático consolidado, o cidadão deve ter condições de participar livre e eficazmente das deliberações públicas, o que não acontecia no Estado autoritário e, possivelmente, ainda não acontecerá plenamente no Estado em transição democrática, no qual os mecanismos possibilitadores dessa participação ainda estão atrofiados ou terão de ser construídos, tanto no que diz respeito à implantação de uma infraestrutura física quanto à implementação de uma nova cultura política voltada para o debate racional argumentativo e de uma nova cultura cívica em função da qual o cidadão passe a se perceber coproprietário da coisa pública e não mero fâmulo dependente de favores concedidos por agentes estatais ou privados; passe a se perceber participante e corresponsável pelo patrimônio público, e não mero destinatário inerte de benesses e obrigações oriundas do Estado. As estruturas do aparato estatal, inclusive Judiciário, portanto, devem ser adaptadas às novas exigências durante o período de transição para a democracia. Segundo Habermas, é “só com a transição para o Estado democrático de direito que deixa de prevalecer esse caráter de concessão que se faz ao indivíduo, de que ele possa integrar uma organização, para então prevalecer a condição de membro integrante do Estado conquistada agora (ao menos pela anuência implícita) por cidadãos participantes do exercício da autoridade política”.2

Essa transição é difícil, normalmente dramática, porque a sociedade tem como ponto de partida determinada situação concreta, erigida pelo regime autoritário e caracterizada por profunda injustiça social e corrupção dos padrões morais e culturais, e como ponto de chegada uma situação hipotética totalmente diferente, de índole democrática e caracterizada pela efetividade dos direitos fundamentais e pelo respeito às diferenças. Esse percurso exige mudanças drásticas e estruturais no modo de organização do Estado, de seus poderes e de suas agências, bem como na prática comunicacional cotidiana dos próprios cidadãos. Em tese, portanto, seria possível identificar diferenças entre o modelo de um Judiciário adequado ao regime democrático consolidado e o de um Judiciário adequado ao regime de transição democrática, porque o Estado de transição se caracteriza pelo fato de manter simultaneamente elementos do regime precedente e do sucessor, ou seja, elementos conservadores do regime autoritário decadente em conflito, muitas vezes furioso, com elementos do regime democrático iniciático. De qualquer forma, neste estudo nos limitaremos à proposta mais modesta consistente em tentar identificar o modelo normativo de Judiciário adequado para atuar no âmbito do Estado

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democrático deliberativo em geral, sem descer a tais detalhamentos, modelo a partir do qual se poderá posteriormente, em estudos mais aprofundados, cogitar as adaptações necessárias para o modelo específico de transição democrática.

Pois bem, considerando que, no capítulo anterior, procuramos perceber que o Judiciário brasileiro estruturou-se em forma de um aparato autoritário, cabe agora esclarecer quais são as funções que permitem qualificar o judiciário como apto ou não para atender as exigências da sociedade democrática para, assim, indagar se ele tem condições de atender às funções judiciais típicas do modelo democrático. Se partirmos da hipótese de que o Judiciário brasileiro padece de um déficit político estrutural porque não está apto a cumprir sua função política institucional, a par de termos de inicialmente fixar os limites contextuais dessa função – o que faremos em seguida –, teremos de esclarecer a seguinte questão: de que modo a atrofia da esfera pública política atua na estrutura e no funcionamento da justiça no sentido de impedir que ela realize suas funções políticas essenciais, considerando que o ato da decisão judicial não deve ser influenciado pela opinião pública?

Coloquemos a questão em outros termos: se compreendemos...

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