Gestação de fetos anencefálicos e pesquisas com células-tronco: dois temas acerca da vida e da dignidade na constituição

AutorLuís Roberto Barroso
CargoProfessor Titular de direito constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Páginas1-37

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I Introdução

A constitucionalização1 do Direito e a ascensão política e institucional do Poder Judiciário produziram um fenômeno singular no Brasil contemporâneo: a judicialização de questões políticas e sociais, que passaram a ter nos tribunais Page 2a sua instância decisória final. Assim tem ocorrido com temas envolvendo (i) políticas públicas, como as Reformas da Previdência e do Judiciário; (ii) relações entre Poderes, como na demarcação dos limites legítimos dos poderes das CPIs ou do papel do Ministério Público na investigação criminal; (iii) em questões do dia a dia, como as relativas à legalidade da cobrança de assinaturas telefônicas e à majoração do valor das passagens de transporte coletivo ou da mensalidade dos planos de saúde.

No plano dos direitos fundamentais, duas ações judiciais em curso perante o Supremo Tribunal Federal mobilizaram a opinião pública e a comunidade jurídica de uma maneira geral:

  1. a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, na qual se discute a legitimidade ou não da interrupção da gestação na hipótese de fetos anencefálicos. O pedido veiculado é a intepretação conforme a Constituição das normas do Código Penal referentes a aborto, para que seja declarada sua não incidência às hipóteses de antecipação terapêutica de parto em casos de gravidez de fato anencefálico; e

  2. a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.510, proposta pelo Procurador-Geral da República, na qual se discute a constitucionalidade ou não das normas da Lei nº 11.105, de 24.03.2005 – Lei de Biossegurança –, que disciplinam as pesquisas com células-tronco embrionárias. O pedido veiculado na ação é o da declaração de inconstitucionalidade da íntegra do art. 5º da Lei 2 , para que sejam consideradas ilegítimas tais pesquisas.

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Ambas as discussões são totalmente independentes. Nada obstante isto, além de terem sido alçadas ao Supremo Tribunal Federal em época contemporânea, existem diversas questões éticas e jurídicas que lhes são comuns, justificando o tratamento conjunto.

Parte I Alguns aspectos técnicos e científicos
II Anencefalia e interrupção da gestação

A anencefalia é definida na literatura médica como a má-formação fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, de modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do tronco encefálico 3 . Conhecida vulgarmente como “ausência de cérebro”, a anomalia importa na inexistência de todas as funções superiores do sistema nervoso central – responsável pela consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade. Restam apenas algumas funções inferiores que controlam parcialmente a respiração, as funções vasomotoras e a medula espinhal 4 . Como é intuitivo, a anencefalia é incompatível com a vida extra-uterina, sendo fatal em 100% dos casos. Não há controvérsia sobre o tema na literatura científica ou na experiência médica.

Embora haja relatos esparsos sobre fetos anencefálicos que sobreviveram alguns dias fora do útero materno, o prognóstico nessas hipóteses é de Page 4sobrevida de no máximo algumas horas após o parto. Não há qualquer possibilidade de tratamento ou reversão do quadro, o que torna a morte inevitável e certa 5 . Aproximadamente 65% (sessenta e cinco por cento) dos fetos anencefálicos morrem ainda no período intra-uterino 6 .

O exame pré-natal mais comumente utilizado para detectar anomalias resultantes de má-formação fetal é a ecografia 7 . A partir do segundo trimestre de gestação, o procedimento é realizado através de uma sonda externa que permite um estudo morfológico preciso, incluindo-se a visualização, e.g., da caixa craniana do feto. No estado da técnica atual, o índice de falibilidade dessa espécie de exame é praticamente nulo, de modo que seu resultado é capaz de gerar confortável certeza médica.

Uma vez diagnosticada a anencefalia, não há nada que a ciência médica possa fazer quanto ao feto inviável. O mesmo, todavia, não ocorre com relação ao quadro clínico da gestante. A permanência do feto anômalo no útero da mãe é potencialmente perigosa, podendo gerar danos à saúde da gestante e até perigo de vida, em razão do alto índice de óbitos intra-útero desses fetos. De fato, a má-formação fetal em exame empresta à gravidez um caráter de risco, notadamente maior do que o inerente a uma gravidez normal 8 . Assim, aPage 5antecipação do parto nessa hipótese constitui indicação terapêutica médica: a única possível e eficaz para o tratamento da paciente (a gestante), já que para reverter a inviabilidade do feto não há solução.

III A importância das pesquisas com células-tronco

A Lei nº 11.105/2005 permite, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco obtidas de embriões humanos, produzidos mediante fertilização in vitro, e que não foram transferidos para o útero materno. Torna-se imprescindível, assim, percorrer algumas noções básicas acerca dessas técnicas.

A fertilização in vitro é um método de reprodução assistida, destinado em geral a superar a infertilidade conjugal, utilizado com sucesso desde 1978 9 . Ela permite que os espermatozóides fecundem os óvulos em laboratório, fora do corpo da mulher, quando este processo não possa ser realizado no seu lugar natural, que é a trompa de falópio. A prática médica consolidada é a de se retirarem diversos óvulos para serem fecundados simultaneamente, evitandose a necessidade de submeter a mulher a sucessivos procedimentos de estimulação da ovulação e aspiração folicular a cada tentativa de fecundação e desenvolvimento do embrião.

Muitos dos embriões obtidos se revelam inviáveis. Quando, todavia, se realiza com êxito a fase de fecundação e desenvolvimento inicial, o embrião é transferido para o útero, onde deverá continuar seu ciclo de formação, até adquirir capacidade de implantação no endométrio, que é a camada interna do útero da mulher (nidação). As possibilidades de êxito na obtenção da gravidezPage 6aumentam em função do número de embriões transferidos. No entanto, para limitar os riscos da gravidez múltipla, a recomendação é a de transferência de dois embriões, sendo comum que se chegue a três. Os embriões excedentes são congelados 10 .

As características que singularizam as células-tronco em relação às demais células são (a) a capacidade de se diferenciarem, i.e., de se converterem em distintos tecidos no organismo e (b) a propriedade de auto-replicação, ou seja, a capacidade que têm de produzirem cópias idênticas de si mesmas. Todavia, tais características não se manifestam com a mesma intensidade em todas as células-tronco. Estas podem ser classificadas em: (a) totipotentes, as quais possuem a capacidade de se diferenciar em qualquer dos 216 tecidos que compõem o corpo humano; (b) pluripotentes ou multipotentes, que podem se diferenciar em quase todos os tecidos, menos na placenta e nos anexos embrionários; (c) oligopotentes, que são capazes de se diferenciar em poucos tecidos; ou (d) unipotentes, que só conseguem se diferenciar em um único tecido.

As totipotentes e as pluripotentes somente são encontradas nos embriões (por isso são chamadas de embrionárias). Tais células podem ser extraídas até três semanas após a fecundação (aproximadamente 14 dias) 11 . É essa capacidade de se diferenciar em todas as células do organismo humano que faz com que as células-tronco embrionárias se tornem necessárias para a pesquisa médica 12 . Como as células-tronco adultas são apenas oligopotentes 13 ouPage 7unipotentes 14 , o seu potencial para a pesquisa é significativamente menor, embora também sejam dotadas de importância 15 .

Dentre as patologias cuja cura pode resultar das pesquisas com células embrionárias, podem ser citadas, por exemplo: as atrofias espinhais progressivas, as distrofias musculares, as ataxias, a esclerose lateral amiotrófica, a esclerose múltipla, as neuropatias e as doenças de neurônio motor, o diabetes, o mal de Parkinson, síndromes diversas (como as mucopolisacaridoses ou outros erros inatos do metabolismo etc.). Todas elas constituem doenças graves, que causam grande sofrimento a seus portadores. Tragicamente, estas patologias atingem parte considerável da população mundial. No Brasil, entre 10 a 15 milhões de pessoas têm diabetes 16 ; 3% a 5% da população têm doenças genéticas que podem ser congênitas ou ter início na infância ou na idade adulta 17 ; surgem entre 8.000 e 10.000 novos casos de lesão medular por ano (paraplegia ou tetraplegia) 18 .

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