A festa e a máquina mitológica

AutorFurio Jesi
Páginas26-58
doi:10.5007/1984-784X.2014v14n22p26
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A FESTA E A MÁQUINA MITOLÓGICA
Furio Jesi
1. Os estudos sobre a festa circunscrevem um âmbito de pesquisas docu-
mentais e metodológicas dentro do qual a antropologia cultural, a etnologia,
a história (ou ciência) das religiões e as do folclore se submetem, hoje, a uma
prova em especial reveladora. As festas dos “selvagens” e as festas do calen-
dário folclórico foram, nos séculos passados, um dos principais objetos de es-
tudo dessas disciplinas: talvez o principal momento, na existência das cole-
tividades estudadas por etnólogos e folcloristas, que junto com o sacrifício
aparece carregado de determinados estilos de vida, seja como patrimônio
mitológico, situado não tanto na existência das coletividades, seja antes delas,
como seu precedente fundante. À diferença da mitologia, a festa é, ao menos
em aparência, diretamente perceptível e documentável pelo estrangeiro. En-
quanto a mitologia, reduzida à pura narração mitológica acessível aos estran-
geiros, revela-se de pronto afastada do seu ser em ato, a festa, ainda que ob-
servada por estrangeiros, parece intacta e conhecível nos seus gestos, no seu
espaço, no seu ritmo, nas suas normas. As reservas particularmente graves
que foram colocadas pela reflexão metodológica a respeito dessa cognos-
cibilidade induziram numerosos estudiosos contemporâneos a renunciar, ao
menos em parte, a tal reflexão e a privilegiar a mitologia como elemento pe-
culiar de uma cultura, elemento em relação ao qual parece menos arriscado
calcular as margens de incognoscibilidade. Desse modo, entre as ciências hu-
manas dos últimos dois séculos e as de hoje, está sendo realizada uma fratura
que põe em evidência soluções de continuidade já latentes no decurso do pen-
samento antropológico em sentido lato (mascaradas pelo modelo ilusório de
um progresso científico linear). O que é colocado em crise é precisamente a
possibilidade de relação cognoscitiva entre o observador moderno e a atua-
La festa e la macchina mitologica.
In: Materiali Mitologici. Mito e antropologia nella cultura mitteleuropea.
Org. Andrea Cavalletti. Torino: Einaudi, 2001, p. 81-120.
Tradução de Vinícius Nicastro Honesko.
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lidade de um momento de existência das culturas de interesse etnológico ou
folclórico. Por isso, acreditamos que os estudos sobre a festa representam um
banco de provas singularmente árduo e revelador. Disciplinas que, até ontem,
afrontaram a existência dos “diferentes” e, como seu instante saliente, a festa,
encontram-se hoje hesitantes diante de cada aproximação de tal existência
em ato. Elas todavia são obrigadas a tomar posição, de algum modo, também
diante do problema que tende a resolvê-las em ciência do não-conhecer, e, de
tal tomada de posição, é lícito extrair conclusões reveladoras sobre o limite e
sobre as possibilidades das ciências do homem.
A aproximação de cada observador ou pesquisador do mecanismo em
questão pode ser descrita como a gênese de um determinado modelo gnosi-
ológico, isto é, do esquema determinado sobre o qual, de quando em quando,
atuou a experiência cognoscitiva. Cada modelo gnosiológico coincide com um
conhecer em ato enquanto durar sua fase genética. Uma vez concluída tal
fase, definindo-se completamente o modelo, é mais exato falar de conheci-
mento reflexo, isto é, do halo de sobrevivência que subsiste em torno ao pró-
prio modelo, então já esquema enrijecido, fórmula dada mais do que conhecer
in fieri1. Cada conhecer in fieri, cada aproximação não reflexa do mecanismo
observado, cada modelo gnosiológico na sua fase genética, é caracterizado e
delimitado pela interação entre o quanto há de permeável no mecanismo e o
quanto há de permeável no observador: conhecimento, nessa acepção, é en-
contro de duas permeabilidades, uma e outra condicionadas pelas circunstân-
cias históricas em que o conhecer é in fieri pelas características que, em tais
circunstâncias, são peculiares dos dois entes envolvidos no processo gnosio-
lógico, o conhecedor e o conhecido. Do momento em que o modelo gnosio-
lógico adquire forma estável em definitivo, a permeabilidade do ente cognos-
cente se reduz ulteriormente; a aproximação do mecanismo por conhecer é,
com efeito, condicionado por um fator ulterior: o próprio modelo, que já é
uma fórmula dada e que, por períodos de duração variáveis, continua a impor-
se em certa medida sobre as operações cognoscitivas de quem não participou
da sua gênese.
Cada modelo consentiu uma determinada forma de conhecimento (ou,
no limite, de não-conhecimento). Examinar todos os modelos juntos, desde o
ponto de vista da história das pesquisas e da epistemologia, significa tentar
1 Em latim, no original. Tradução: “em desenvolvimento”. (n. t.)
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não apenas verificar as características condicionantes das culturas individuais
dentro das quais foram formulados e o condicionamento ulterior que eles
mesmos exercitaram, depois de ter terminada sua fase genética, mas também
uma ulterior forma de conhecimento do mecanismo que eles de vários modos
afrontaram e uma reflexão sobre um dos principais problemas de método no
âmbito das ciências humanas. Quem recolhe uma série de modelos da festa
formulados a partir do século XVI propõe-se a dois objetivos inter-relaciona-
dos: o estudo dos condicionamentos primários e secundários que intervêm na
gênese dos modelos e no seu influxo ulterior, e uma nova aproximação do
fenômeno da festa. Dos modelos precedentes, é possível usufruir de elemen-
tos de patrimônio gnosiológico que devem ser colocados em condição de re-
agir uns com outros, como partes de uma composição na qual consiste o
ulterior conhecer. Se cada modelo possui uma objetiva veridicidade gnosio-
lógica, é preciso tentar colocar em funcionamento conjunto os múltiplos mo-
delos, não neles procurando as concordâncias que, mesmo quando existem,
permanecem escassamente relevantes por conta da autonomia intrínseca de
cada modelo, mas fazendo interagir os diversos modelos e seus coletores. É
essa a ulterior aproximação do mecanismo da festa: coadunar e ordenar em
uma composição modelos gnosiológicos, de modo que tal composição seja um
conhecer in fieri. Mas para atingir tal fim é indispensável tornar as várias par-
tes da composiçãoos vários modelos interagentes umas com as outras,
não enrijecidas dentro de seus confins individuais, não reparadas, graças à sua
definição, pela interação recíproca.
Tornar os modelos individuais gnosiológicos interagentes entre si significa
conduzir cada um deles às modalidades de não-conhecimento que são a forma
côncava da sua objetividade. Cada um desses modelos é uma criação concei-
tual autônoma, obediente às próprias leis intrínsecas, justamente por corres-
ponder a determinadas e autônomas modalidades de não-conhecimento. Tor-
nar os modelos interagentes entre si significa tornar atual sua objetividade,
portanto, seu aderir a formas individuais de não-conhecimento. A técnica de
conhecimento à qual pretendemos recorrer age na tensão entre a qualidade
negativa do seu operar cada modelo gnosiológico, em função das modalidades
de não-conhecimento que lhes são próprias, e a qualidade positiva do seu criar
por composição. Ela, além disso, deve afrontar o problema da atualidade do
seu êxito. Essa atualidade está, por sua vez, em tensão dialética em relação à
inatualidade dos elementos da composição, isto é, dos modelos gnosiológicos.
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