Fenômenos Cromáticos Cadavéricos: Os Dentes Rosados na Perícia Odontolegal

AutorJorge Paulete Vanrell
Ocupação do AutorMedicina, Bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais e Licenciatura Plena em Pedagogia
Páginas215-238

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Introdução

“Talvez a morte tenha mais segredos a nos revelar que a vida.” (Gustave Flaubert)

É inegável que a necessidade e afã do homem por identificar, bem como por explanar os enigmas da sua efêmera existência mundana, remontam às suas próprias e ancestrais origens na Terra. Com efeito, a sua inata curiosidade tem sido um peremptório fator para favorecer o seu desenvolvimento como ser social, político e metafísico, facilitando um melhor relacionamento com o meio ambiente, de si para consigo e com seu próximo, e, ao mesmo tempo, um mais profundo conhecimento da sua única e inelutável sina final: a de estar reservado a morrer (Schopenhauer, 1986, in Giacoia Júnior, 2005).

Desse modo, vislumbra-se que tanto a identificação de um sujeito quanto o minudente estudo da sua eventual morte, e das transformações a ela relacionadas, constituem, na prática legal e forense, uma tarefa quase cotidiana e de manifesta repercussão em qualquer comunidade. Claro está que a determinação da sua individualidade e a consideração de tudo o que se relacione ao seu falecimento (causa mortis médica, causa mortis jurídica, características, métodos de exame e modificações sofridas pelos restos mortais), via de regra, tornam-se atividades muito mais simples quando se trata de cadáveres recentes e incólumes ou de ossadas completas e bem conservadas (Vanrell & Borborema, 2007; Vanrell, 2007, 2009; Galvão, in Vanrell, 2009).

Contudo, já nessas circunstâncias ou em outras menos favoráveis (corpos ou esqueletos mutilados, ossos isolados ou fragmentos deles), deve destacar-se a participação da Odontologia Legal, visto que os dentes exsurgem como elementos de auxílio nos referidos processos. Inadequado seria esquecer que

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esses órgãos apresentam uma formidável resistência às conjunturas extremas (desastres em massa, incêndios, explosões etc.) e às naturais fases de decomposição, à diferença do que acontece com os tecidos moles do corpo, além de uma série de particularidades que impedem haver duas pessoas com a mesma dentadura. Dado o exposto, alguns autores consideram esta como a verdadeira “caixa-preta” do organismo.

Nessa esteira, o reconhecimento e a adequada interpretação dos diversos fenômenos cromáticos cadavéricos, notadamente daqueles que têm assento nas peças dentárias, podem contribuir com o trabalho dos tanatologistas na procura de ilações e conclusões irretorquíveis, ainda nos casos mais extravagantes e intrincados.

É preciso insistir em que, a despeito de possuírem uma topografia, etiologia, cronologia de aparição, evolução e aparência díspares, essas peculiares modificações de coloração manifestam-se com marcada frequência, sendo igualmente de suprema serventia para estimar a cronotanatognose, ou seja, o tempo transcorrido entre dois momentos: o da morte e o do exame necroscópico.

Apenas à guisa de exemplo, citaremos a mancha azul enegrecida da esclerótica (“mancha negra da esclerótica”, “livor scleroticae nigrescens de Sommer” ou Sinal de Sommer & Larcher), os livores hipostáticos ou hipóstases cadavéricas, a mancha verde abdominal (de localização torácica nos afogados e recém-nascidos), a “máscara de negro” (privativa das vítimas de afogamento expostas à ação direta do ar e da luz solar, uma vez retiradas do meio aquoso), o escurecimento da pele, a circulação cadavérica ou póstuma de Brouardel, o escurecimento do órgão de revestimento corpóreo nos cadáveres mumificados ou corificados e os dentes rosados.

Inobstante, convém, por oportuno, assinalar que a primeira e a última são as que passam mais amiúde despercebidas no âmbito do IML, por contar com médicos-legistas ou odonto-legistas precipitados, descuidados, pouco competentes e/ou bisonhos, que não procuram ou reparam nas mesmas (por desconhecerem que representam transformações post mortem ou por considerá-las irrelevantes), ou tão-só pela própria falta desses profissionais.

Quadros discrômicos dentários

É fato sobejamente conhecido que a cor dentária, ao igual que a da pele, dos olhos e cabelos, é específica para cada indivíduo, variando inclusive entre as

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duas dentições humanas, de um dente a outro e, no decorrer do tempo, no mesmo órgão em questão. Ela não depende apenas do grau de mineralização e translucidez do esmalte mas, mormente, do matiz da dentina subjacente (Tem Bosch & Coops, 1995; Terry et al, 2002).

Nesse contexto, as discromias ou tinções dentárias constituem alterações ou mudanças da cor primitiva e congênita das peças, visíveis e detectáveis até para um leigo em Odontologia.

Classificação das Discromias Dentárias

TINÇÕES INTRÍNSECAS A) Gerais 1. Doenças sistêmicas: a) Alterações hepáticas b) Alterações hemolíticas c) Alterações metabólicas d) Alterações endócrinas 2. Displasias dentárias: a) Amelogênese imperfeita b) Dentinogênese imperfeita 3. Ingestão de substâncias: a) Tetraciclinas e outros antibióticos ou fármacos b) Fluorose c) Déficit vitamínico e de outras substâncias 4. Alterações por calor 5. Envelhecimento e cor post mortem

B) Locais 1. Processos pulpares e traumatismos: a) Hemorragias b) Calcificações c) Necrose

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  1. Patologias dentárias: a) Cárie b) Reabsorção radicular c) Hipoplasias do esmalte d) Dente de Turner 3. Materiais de obturação, endodontia e outros: a) Materiais de obturação

- Amálgama de prata

- Resinas b) Materiais de endodontia c) Outros materiais

TINÇÕES EXTRÍNSECAS 1. Alimentos e hábitos sociais: a) Alimentos (café, chá, mate, vinho, bebidas, cola etc.) b) Tabaco c) Clorexidina 2. Tinções metálicas 3. Tinções bacterianas: a) Matéria alba e sarro b) Depósitos de cor verde c) Depósitos de cor laranja d) Depósitos de cor preta

Tinções Intrínsecas

São aquelas que se originam no interior do dente ou nos tecidos dentários. Podem subdividir-se em permanentes ou transitórias, em função da sua duração, e em generalizadas ou individuais, caso comprometam a totalidade das peças ou somente uma ou algumas delas.

A) Gerais

Devem-se a causas gerais que agem, prioritariamente, durante o período de formação dentária, muito embora em certas ocasiões ocorram já concluído o estágio de desenvolvimento (e.g., envelhecimento), afetando a dentição completa

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ou vários dos seus componentes. A propósito, qualquer desordem sistêmica ou perturbação séria que se aloje no concepto desde a sexta semana de vida intra-uterina, até na própria puerícia, pode modificar o normal desenvolvimento do broto dentário (capuz), causando dano à dentina e ao esmalte (linhas horizontais, erosões, defeitos em desnível ou degraus, modificações cromáticas, correspondentes aos períodos de surto, empuxo ou agravamento da patologia crônica de base), tanto nas peças decíduas quanto nas definitivas (Bonilla et al, 2007; Vanrell & Borborema, 2007; Borborema, in Vanrell, 2009). Entretanto, às avessas do que se poderia pensar, não existe conformidade de opiniões sobre quais doenças são as responsáveis pela produção das referidas sequelas. Então, para Farias et al (2001), “a icterícia, tifo e cólera podem ocasionar variações de cor em dentes vitalizados, que voltam ao normal uma vez restabelecida a saúde dos pacientes”, ao passo que segundo Vanrell & Borborema (2007) e Borborema, in Vanrell (2009), o serão as infecciosas ou parasitárias (rubéola, sífilis, tuberculose etc.), as metabólicas (e.g., porfiria), as displásicas (amelogênese imperfeita, dentinogênese imperfeita etc.) e as medicamentosas (por exemplo, pelo uso das tetraciclinas).

1. Doenças sistêmicas

  1. Alterações hepáticas

    Alguns transtornos vinculados ao fígado, como a bilirrubinemia (nas situações de enfermidade congênita em crianças com icterícia severa e de doença hepática crônica) e a atresia biliar (estenose ou obstrução dos ductos biliares), provocam uma marcada majoração no nível dos pigmentos da bílis (bilirrubina, biliverdina) em sangue, propiciando o depósito destes nas estruturas dentárias. Quando tal acontecimento se apresentar concomitantemente à etapa de formação da dentição caduca, suscitará o aparecimento de uma intensa área de tom amarelo-esverdeado ou amarronzado, mais evidente na porção radicular das mesmas (Bonilla et al, 2007; Macedo et al, 2007).

    b) Alterações hemolíticas

    Determinados distúrbios de saúde que cursam com lise ou destruição massiva de hemácias, eritrócitos ou glóbulos vermelhos (hemólise), aumento da hemoglobina livre e dos produtos derivados da sua decomposição, coincidentes

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    principalmente com o período de formação da dentição temporária, acompanham-se de colorações dentárias com nuança azul-esverdeada, preto-azulada ou amarronzada (Alto et al, 2004). Como exemplo, podemos enumerar: a talassemia (de origem hereditária e caracterizada pela constituição anormal da hemoglobina), a eritroblastose fetal ou doença hemolítica do recém-nascido (por incompatibilidade entre os tipos sanguíneos da mãe e do feto) e a anemia drepanocítica ou de células falciformes (particularizada por uma hemoglobina anômala – “S” – que define a forma de meia-lua ou de foice das hemácias).

    c) Alterações metabólicas

    Dentre elas, destacamos a alcaptonúria e a porfiria.

    A primeira – a alcaptonúria – é em um quadro incomum, genético (autossômico recessivo), que se revela como um déficit enzimático na cadeia do meta-bolismo dos aminoácidos. Em rápidas pinceladas, ocasiona-se pela ausência da enzima oxidase do ácido homogentísico (metabólito da tirosina), o qual circula pelo sangue, excreta-se pelo suor e urina e deposita-se nas cartilagens e válvulas cardíacas. Suas manifestações clínicas mais significativas são: artropatia, acometimento cardiovascular, urina escura, pigmentação cutânea, ocular e dentária, ligeiramente amarronzada (Touati et al, 2000).

    A segunda – a porfiria – consiste em um conjunto de perturbações here-ditárias que envolvem algumas enzimas...

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