Feminist political theory and criticism of liberal citizenship/ Teoria politica feminista e critica a cidadania liberal.

AutorRamos, Emerson Erivan de Araujo

Introducao

Aristoteles, o qual boa parte da tradicao politica contemporanea busca inspirar-se, foi, ao tratar de questoes de ordem pratica, o grande responsavel por sistematizar a Ciencia Politica de origem helenica, elaborando conceitos que ainda hoje delineiam profundos debates politicos desde o marxismo a tradicao republicana. Dedicando-se ele, em certo momento, a investigar as origens da teoria politica, propoe que esta se debruca, em ultima instancia, sobre a investigacao da maneira ideal de exercer o poder politico. Mais claramente, o que defende e que o objetivo inicial de toda a teoria politica e encontrar o melhor regime politico por natureza (1). Partindo desse pressuposto, argumenta ele que o primeiro dos filosofos politicos foi o individuo que, antes de todos, conseguiu pensar e elaborar um arquetipo ideal de regime politico. Consoante Aristoteles, intentando encontrar na historia o relato daquele que inaugurou essa discussao, o primeiro de todos os filosofos politicos foi o grego Hipodamo de Mileto (STRAUSS, 2006).

A contramao, entretanto, conta-se, Hipodamo foi antes de tudo um grande urbanista e, devido a limitacao a seu mister, restringiu-se a conceber o regime politico ideal como subproduto da planificacao urbana por ele imaginada (2). Em um narrar sucinto, o simplorio regime proposto por Hipodamo resumia-se a delimitar o corpo de cidadaos ao numero de uma cidade-Estado em dez mil habitantes e dividir a terra em tres partes; tres tambem seriam os tipos de leis que deveriam ser elaboradas, posto que apenas tres seriam os motivos que poderiam levar a um litigio judicial. Utilizando de maneira quase mistica o numero tres, Hipodamo de Mileto esquematizou superficialmente as idiossincrasias da esfera politica.

Leo Strauss, analisando a Politica de Aristoteles e refletindo sobre o modelo de Hipodamo, expoe: "Apesar, ou por causa de sua ambicao, Hipodamo nao obteve exito na fundacao da filosofia ou ciencia politica porque nao comecou por levantar a pergunta: 'o que e o politico?', ou melhor 'o que e a polis?'" (3,4) (STRAUSS, 2006, p. 35, traducao nossa). O autor alemao aponta, destarte, para o fato de que nao ha filosofia politica que nao traga a cabo os fundamentos ontologicos do proprio fenomeno politico, porquanto o primeiro dos questionamentos acerca de um objeto repouse exatamente sobre o que e esse objeto, isto e, sua essencia ou natureza. Ainda durante o mesmo comentario, Leo Strauss poe em testilha a analise pouco problematica de Hipodamo, posto que este foi incapaz de enxergar a caracteristica primeira do fenomeno politico: "a politica pertence a uma classe em si mesma" (5) (STRAUSS, 2006, p. 35, traducao nossa).

A interpretacao de que a arena publica e um espaco agonistico, de conflito de classes, monopolizado por uma delas, e uma ideia persistente desde a Grecia Antiga e reverbera na atualidade (6). Nao se trata de afirmar, contudo, que todo o fenomeno politico e social seja previamente determinado e planejado detalhadamente por essa classe a que Strauss se refere, como se os governados fossem titeres no jogo de poder, a servico da classe dominante.

Partindo dos pressupostos sobre a esfera publica ate aqui levantados, muito recentemente (nas ultimas quatro decadas), de maneira bem elaborada, a Teoria Politica Feminista envidou-se em descrever a sua maneira o fenomeno politico. Utilizando-se do genero como categoria de analise (7) e valendo-se da aprendizagem de que o poder politico e exercido por uma classe (nao compreendida necessariamente nos moldes marxistas do termo), boa parte das teoricas feministas responderam a pergunta "O que e a politica?" com a proposicao: a politica e o campo em que se origina o governo da mulher pelo homem. Sendo assim, a esfera publica e compreendida pela teoria politica feminista como o principal mecanismo de exercicio do poder patriarcal. O monopolio da esfera publica pelos homens determina que tipo de politica e que modelo de cidadania devem ser adotados. Se Leo Strauss sustenta que a politica e inevitavelmente exercida por uma classe em si, as feministas vao alem: elas afirmam categoricamente que o poder politico e exercido pela classe masculina, instaurado na forma de patriarcado (8), e esse e o principal mecanismo que constroi a hierarquia de genero.

De maneira inedita, o que a teoria politica feminista revela e que a diferenca sexual e a subordinacao da mulher sao os espeques para a construcao da esfera publica--bem como de seu reverso, a esfera privada. Ao lado do marxismo, essa se tornou a principal critica do liberalismo (9), em especial no que tange a denuncia de seu falso universalismo.

  1. O projeto liberal de cidadania

    A liberdade entre os liberais e pregada como a liberdade de oportunidades, ou a possibilidade de cada um poder realizar-se individualmente, sem a interferencia na esfera privada dos demais membros da sociedade. Nesse sentido, a novidade do liberalismo e instituir uma acepcao negativa de liberdade, a qual dispensa a participacao do/no coletivo. Assim, interpreta-se aqui a liberdade entre os liberais como descreve Benjamin Constant em seu celebre Da liberdade dos antigos comparada a dos modernos. Segundo o autor, a liberdade dos modernos, levado a cabo pelo projeto liberal, e entendida como:

    (...) o direito de nao se submeter senao as leis, de nao poder ser preso, nem detido, nem condenado, maltratado de nenhuma maneira, pelo efeito da vontade arbitraria de um ou de varios individuos. E para cada um o direito de dizer sua opiniao, de escolher seu trabalho e de exerce-lo; de dispor de sua propriedade, ate de abusar dela; de ir e vir, sem necessitar de permissao e sem ter que prestar conta de seus motivos ou de seus passos. E para cada um o direito de reunir-se a outros individuos, seja para discutir sobre seus interesses, seja para professar o culto que ele e seus associados preferirem, seja simplesmente para preencher seus dias e suas horas de maneira mais condizente com suas inclinacoes, com suas fantasias. (CONSTANT, 1985, p. 10) (10)

    Desse modo, como argumenta o frances, a liberdade tal qual hoje e traduzida, consiste em ser soberano no ambito privado e apenas influir na esfera politica, seja como funcionario publico participando da administracao do Estado ou ativamente no processo de escolha dos agentes politicos que representam o povo no exercicio da soberania. A liberdade, assim, e individual e segue a proposicao comum a modernidade de liberdade civil, em que cada homem deve ser restringido na exata medida que possa salvaguardar igualmente a liberdade de todos.

    A igualdade, inexoravelmente vinculada a liberdade, e, tambem, entendida como igualdade de oportunidades. A exemplo do que propoe Thomas H. Marshall (1967, p. 101), no mesmo sentido da tese lockeana:

    O direito do cidadao nesse processo de selecao e mobilidade e o direito a igualdade de oportunidade. Seu objetivo e eliminar o privilegio hereditario. Basicamente, e o direito de todos de mostrar e desenvolver diferencas ou desigualdades; o direito igual de ser reconhecido como desigual. Nos estagios iniciais do estabelecimento de tal sistema, o efeito maior reside, e logico, na revelacao de igualdades latentes--permitir que o jovem desprovido de recursos mostre que e tao capaz quanto o rico. Com isso, individuos nascem iguais porque sao livres para desenvolverem suas capacidades. Sendo assim, sao iguais porque sao igualmente livres (11); essa igualdade, em que se baseia o liberalismo, e a igualdade formal. Esclarece-se sobre a relacao entre liberdade e igualdade no projeto liberal:

    No centro da liberdade negativa existe um (...) aspecto do liberalismo que se dirige ao individuo em sua faceta politica de cidadao: a concepcao de individuo como "portador de direitos formais", que estao calculados para protege-lo da infracao ou interferencia dos demais e para lhe garantir as mesmas oportunidades ou "acesso igual" que aos demais. (DIETZ, 1999, p. 8)

    A liberdade e a igualdade, tal como as compreende o liberalismo, lancam, assim, o ser humano a uma concepcao de sujeito autonomo e racional, o qual encontra em si mesmo o sentido de sua existencia e de suas acoes (12). Essa concepcao so foi possivel devida a incorporacao, pela teoria politica moderna, do individualismo como forma de experimentar o mundo, que deu nova forma a esfera politica, possibilitando o surgimento do liberalismo.

    Tomar os individuos por seres humanos abstratos e racionais (como fazem os constratualistas), significa torna-los ontologicamente anteriores a sociedade que estao inseridos, e retirar do sujeito as paixoes que impulsionam o ser a acao. Um individuo sem paixoes e exatamente a consumacao da ideia de um ser completamente autonomo, por isso descontextualizado, destacado e isolado do ser social (13). Destarte, afirma Mary Dietz (1999, p. 6):

    Na sociedade liberal poderia se dizer que o contexto nao e "tudo". E, alias, nada, porque o liberalismo concebe as necessidades e capacidades dos individuos como se fossem independentes de qualquer condicao social ou politica imediata. O que conta e que entendamos os seres humanos como individuos racionais, com seu proprio valor intrinseco. Essa concepcao de ser humano autonomo deriva da teoria politica hobbesiana e e tradicionalmente exemplificado na seguinte passagem: "(...) consideremos os homens como se nesse instante acabassem de brotar da terra, e repentinamente (como cogumelos) alcancassem plena maturidade, sem qualquer especie de compromisso entre si" (14) (HOBBES, 2002, p. 135). A visao de que seres humanos sao "como cogumelos" gera uma percepcao da sociedade em que individuos sao como atomos isolados. Essa proposicao encontra-se no contexto de sua nova acepcao de liberdade, que encontra seu apice na teoria politica lockeana. A autonomia do individuo e a consequencia da conquista de sua nova liberdade, o objetivo por que tanto lutou o liberalismo (contra a opressao do sistema absolutista). Conforme visto ate aqui, combinados o individualismo e a...

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