Feminismo islamico: notas para um debate

AutorCésar Augusto Baldi

César Augusto Baldi. Mestre em Direito pela ULBRA/RS. Doutorando em Direitos Humanos e Desenvolvimento pela Universidad Pablo Olavide/Espanha, organizador do livro Direitos humanos na sociedade cosmopolita, Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

Se a luta por justiça social é também uma luta por “justiça cognitiva”1, e, portanto, pela redução ou eliminação dos silenciamentos, ausências e inexistências dos conhecimentos, cosmologias e tradições distintos da ocidental, quais são as traduções que devem ser feitas entre os movimentos de direitos humanos, para desocultar ou revelar sofrimentos que passam como “necessários”, mas que ferem outras noções de direitos humanos?

A versão hegemônica de direitos humanos tem assentado nos pilares de liberdade, igualdade e fraternidade, uma visão profundamente vincada nos marcos decimonônicos da Revolução Francesa e caudatária de uma visão de progresso (de que a teoria das três gerações sucessivas de direitos é apenas uma de suas manifestações). Apesar de sua defesa da universalidade e da interdependência entre as distintas dimensões de direitos, continua a dar maior ênfase àquela que destaca direitos civis e políticos, em detrimento dos culturais, econômicos e sociais e mesmo de dimensões transgeracionais. É o caso, por exemplo, das questões envolvendo o terror ou, mesmo de movimentos sociais reivindicatórios como o feminismo.

Se é verdade que a teoria também canônica do feminismo fala em duas vagas/ondas, uma do “feminismo da igualdade” e outra do “feminismo da diversidade”, o fato é que as questões de raça, etnia colocaram novos desafios para pensar as lutas envolvendo “justiça de gênero”. Eram brancas ocidentais sendo questionadas por “chicanas”, “mulheres do Terceiro Mundo” ou por teorias pós-coloniais. Mas até que ponto as teorias pós-coloniais teriam sido “descolonizadas”?

A discussão envolvendo justiça de gênero com mulheres asiáticas, em especial islâmicas e budistas, toca em outras questões: existem outras noções do que significa “humano/a” no mundo, competindo com as concepções que o feminismo defende? O feminismo poderia aprender com movimentos nãoliberais? Do que se trata, pois, é da observação de que se o feminismo quer ser um movimento vibrante e com uma tradição mais larga, deveria, diz Saba Mahmood, “expandir seus horizontes para a consideração de projetos, aspirações e desejos que não reproduzem seus pressupostos e telos – mas que os desafiam”2.

O que tem sido denominado – com todas as divergências possíveis, internas e externas - de “feminismo islâmico” tem colocado em questão muitos pressupostos do feminismo “internacional” e de suas lutas, mas, fundamentalmente, os seus pressupostos seculares.

O secularismo tem sido visto como um processo de progressiva “privatização” de determinadas questões - família, religião - delimitando-se um espaço público e cívico. Neste, contudo, a religião não estava incluída, porque o seu destino é resignar-se ao “espaço privado”. Ocorre que o próprio feminismo já colocara, na agenda, seja pela violência doméstica, seja pelo patriarcalismo, a politização da esfera privada, um espaço político que foi ampliado com os movimentos de gays, lésbicas, transgêneros e todas as teorias “queer”. O questionamento, contudo, tinha o limite da presunção de que lutas somente poderiam ser secularizadas. Decorrência disto é que o “espaço privado” foi sempre infenso à “civilidade” e à discussão dos direitos humanos: “a estabilização da religião foi o correlato da estabilização, por via da religião, das opressões e dos medos do espaço privado.3

Salman Sayyid4 salienta, por exemplo, que não se mantêm quaisquer dos três alegados benefícios do secularismo: a) epistemológicos, porque “sem secularismo não há progresso científico”; b) cívicos, porque necessário para assegurar a paz e a harmonia social; c) democráticos, porque a “eliminação de Deus permite que o espaço do poder seja esvaziado” e, portanto, a “soberania popular parecia excluir qualquer lugar para idéia de soberania de Deus”. No primeiro campo: a) a ausência de igreja organizada, no Islã5, torna difícil a demarcação clara entre autoridade da religião e da ciência; b) a centralidade do Divino, por sua vez, torna impossível que narrativas humanas e divinas ocupem o mesmo espaço ontológico. No segundo campo, porque: a) inexiste qualquer conflito, na história islâmica, similar ao longo período de guerras religiosas internas da Cristandade; b) o secularismo, nas sociedades islamíticas6, significou, muitas vezes, “des-islamização”; c) a escala de violência nos países islâmicos de cunho secular não permite associar secularismo e paz cívica; d) inexiste justificativa para considerar a religião mais perigosa (“por que deveriam as paixões religiosas ser consideradas mais violentas que outras paixões?”) que a utilização de “história”, “ciência” ou “razão” no seu lugar. No campo democrático, a alegada vantagem ignora múltiplas formas de soberania popular, que não passam pelo léxico ocidental. O secularismo, no seu entender, tem uma história própria na tradição ocidental, sendo, portanto, uma narrativa “provincial” européia, de forma que a introdução da divisão religioso/secular em outras historiografias favorece a “confirmação da supremacia do Ocidente”.

Maldonado-Torres7, por sua vez, apresentando outras genealogias do processo europeu de secularização, demonstra os acordos provisórios, as rearticulações entre os dois pólos e, mesmo reformulações, que, contudo, mantêm inquestionada a hegemonia “epistêmica ocidental”. Para ele, a primeira modernidade, baseada na religião, daria lugar à segunda, fundada na noção de civilidade (e seu racismo correlato), de tal forma que o discurso secularista se torna necessário para manter os grupos populares sob controle, por meio de uma clara distinção de espaço cívico e público ou privado, de forma a legitimar a colonização: os “outros coloniais eram concebidos como primitivos vivendo em estágios onde a religião e a tradição dominavam os costumes e formas de vida”, uma forma de manter subjugados sob os “auspícios de razão e civilização”.

O confronto Europa cristã/Europa moderna secular é, em realidade, “um evento intraimperial”: a oposição à religião não se dá porque esta é imperial, mas sim porque não é suficientemente imperial. O espaço público, portanto, vai-se “purificando” de tudo que é não-nacional, não-civilizado, convertendo-se em espaço central (e, pois, “sagrado”), ao passo que o espaço privado se localiza onde estão “os colonizados e as subjetividades racializadas”. Deste ponto de vista, a religião se torna a forma mais eficiente de subalternização de conhecimentos e de povos (a religião cristã é mais moderna e completa, Islã é uma religião violenta, budismo é místico, os povos coloniais vivem em estágios civilizacionais onde dominam a religião e a tradição, etc). Ficam mantidas as fronteiras moderno/não-moderno, ocidental/não-ocidental. O religioso só existe em função do seu “outro”, o secular (e em posição subalterna).

Daí porque Saba Mahmood8 e Talal Asad9 assentem a “normatividade” do secularismo: ele não se destina tanto à separação Estado e religião, nem em garantir a liberdade religiosa, mas na forma de subjetividade que a cultura secular autoriza, as formas religiosas que resgata, e a forma peculiar de história e tradição histórica que receita. Este “aspecto normativo” é que faz diferentes também as percepções na Inglaterra, nos Estados Unidos, na França, na Turquia: em realidade, a dimensão religiosa não é indiferente ao Estado, pois é ele quem determina, pela visão secular, “como” e “quando” a afiliação religiosa pode e deve ser expressa na vida pública (daí a questão do véu, das festividades religiosas, das datas da Pátria, etc).

Que defendem as distintas versões de “feminismo islâmico”? As atitudes plurais têm um norte no sentido que buscam, dentro de um referencial islamicamente centrado, verificar potencialidades emancipatórias no discurso e na prática, em relação às mulheres. As feministas seculares tendem a atribuir somente sentidos patriarcais ao Islã e, pois, a rechaçar qualquer outra possibilidade que não seja fundada em pressupostos de direitos humanos (sendo contrário a estes, o Islã deve ser descartado “in totum”). Como destaca Ratna Kapur10, para o contexto multirreligioso do Sudeste Asiático, “o problema com uma posição secular formal é que nunca interage com o domínio religioso”, não abordando as formas pelas quais a religião estabelece mediações com os direitos das mulheres, nem como se define como parte integral de suas vidas diárias, obrigando-as, ao final, a eleger entre os “direitos de igualdade de gênero” e os “direitos à liberdade de religião.”

Ao contrário, Amina Wadud11, nos EUA, sustenta a necessidade de “jihad de gênero”, a luta para estabelecer justiça de gênero no pensamento e na práxis muçulmana, erradicando todas as formas, públicas ou privadas, de injustiça para a “inteira humanidade da mulher”, em nome do Islã, mas também para não-muçulmanos e não-heterossexuais muçulmanos. Uma flexibilização da leitura corânica, portanto...

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