Feminismo e Direito

AutorEduardo Ramalho Rabenhorst

Eduardo Ramalho Rabenhorst. Diretor e Professor do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba. Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito da mesma instituição.

Introdução

Ao contrário do que ocorre em muitos centros universitários pelo mundo afora, a teoria feminista do direito é praticamente ignorada no Brasil. Entre nós, raras são as publicações dedicadas ao tema, faltam revistas especializadas e praticamente inexistem grupos de pesquisa na área, como bem mostrou pesquisa recente1. É bem verdade que não são poucas as organizações e entidades que trabalham com o tema dos direitos das mulheres em nosso país, e realizam intervenções feministas na prática, porém no que concerne ao interesse pela reflexão teórica feminista sobre o direito propriamente dita, a carência é quase que absoluta.

Ora, o que poderia justificar tal desinteresse por uma perspectiva de análise, julgada, até mesmo pelos seus críticos mais severos, como uma das mais importantes entre aquelas produzidas na segunda metade do século XX? É bem verdade que os chamados gender studies parecem formar uma espécie de “clube fechado”, supostamente constituído por pesquisadoras altamente especializadas, que trabalham com categorias e temas próprios, publicam em língua inglesa, e discutem apenas entre si. Porém, no entendimento de muitas feministas, o que realmente explica a desconfiança dos estudos jurídicos em relação à teoria feminista é o fato de que neles ainda perdura uma representação do direito como técnica de controle social neutra, universal e abstrata, quando, na verdade, o direito já representa — por distorção, uso ou definição — um ponto de vista previamente sexualizado2. Daí porque, como oportunamente sublinham os editores de um periódico francês dedicado ao tema, aos olhos dos juristas a abordagem feminista parece ensejar mais “uma teoria contra o direito do que propriamente uma teoria no direito”3 .

De fato, o feminismo, nas suas mais variadas versões, das quais trataremos mais adiante, sempre se posicionou de forma crítica em relação ao direito. Além de suspeitar da estabilidade abstrata das categorias jurídicas, o que fez com que este movimento guardasse proximidade com a chamada “teoria crítica”, a perspectiva feminista propôs uma aproximação radical dos temas e problemas tratados no âmbito da reflexão teórica sobre o direito, em especial daqueles atinentes aos campos da teoria da justiça e dos direitos humanos. No âmago desta abordagem, encontra-se a desconfiança de que o direito instauraria e manteria, com maiores ou menores sutilezas, um sistema de dominação que subjugaria e inferiorizaria as mulheres e os grupos com sexualidade dissidente em relação aos padrões tradicionais.

Importa observar, no entanto, que nem todas as perspectivas feministas são tão céticas em relação ao direito. Para Patrícia Williams4, por exemplo, a linguagem dos direitos desempenha um papel fundamental no processo de emancipação dos sujeitos subalternos. Com efeito, para quem nunca teve sua dignidade reconhecida ou dela foi despojado, poder ver-se como sujeito de direitos é uma aquisição fundamental que só pode ser desprezada por aqueles que estão confortavelmente abancados na formalidade do mundo jurídico.

É preciso, portanto, compreender bem o significado do feminismo como abordagem crítica do direito. E para tanto, cumpre entender o próprio percurso histórico e conceitual do feminismo e a grande variedade de teses construídas por este movimento social acerca do direito. Tal é o escopo principal deste breve texto, cuja estrutura é bastante incipiente. Iniciaremos com um breve relato da trajetória histórica do feminismo, destacando a crítica epistemológica e social como elemento transversal. Em seguida, apresentaremos os principais posicionamentos feministas em relação à teoria do direito. Por fim, destacaremos alguns temas específicos que se sobressaem dentro desta análise.

1 - O feminismo como teoria crítica

Falar de feminismo no singular, como fizemos até agora, é incorrer em grave equívoco. Não estamos diante de uma forma de pensamento unívoca ou de uma prática política homogênea. Ao contrário, o feminismo é uma arena de debates entre pontos de vista diversos e conflitantes que chegam inclusive a propugnar a própria desconstrução deste movimento. Por isso mesmo, parodiando Nietzsche, podemos dizer que o feminismo, mais que uma definição precisa, tem uma história complexa, que se vincula às diferenças intelectuais entre as mulheres e às experiências concretas por elas vividas.

A história do feminismo costuma ser narrada de forma excessivamente simplificada como um desenrolar de três “vagas”5. A primeira delas vai da Revolução Francesa até o final da Primeira Grande Guerra. É o chamado “feminismo igualitário”, liberal ou marxista, que se preocupa fundamentalmente em identificar as causas da discriminação das mulheres e em reivindicar igualdade entre elas e os homens, sobretudo no plano dos direitos civis e políticos. A segunda vaga, por seu turno, refere-se ao ressurgimento do movimento feminista na década de 1960 e o desenvolvimento de uma postura “radical” que identifica a “raiz” da dominação masculina na estrutura do patriarcado. Por fim, a partir da década de 1990, emergem as posturas teóricas ditas “pós-feministas” que denunciam o fato de que o próprio discurso feminista estaria dominado por um ponto de vista ocidental, branco e heterossexual, que deixaria de lado os interesses e desejos de muitas mulheres, como também de outros grupos subalternos.

Para Louise Toupin6, em torno de três questões fundamentais é que se articulariam os grandes momentos da trajetória feminista: Qual é causa da posição subordinada das mulheres? Em quais lugares ou espaços tal posição se expressa? Que estratégias podem ser empregadas para superar esta situação de subordinação?

Entende o feminismo igualitário do tipo liberal que a causa da subordinação feminina estaria assentada nos preconceitos e estereótipos acerca das mulheres, e o espaço maior de manifestação desta dominação seria a própria vida pública. No caso da cultura ocidental, desde a Antiguidade a imagem da mulher é a de um ser inferior por natureza, condenado ao espaço doméstico. Para Aristóteles, por exemplo, as mulheres carecem da racionalidade exigida para o exercício da política. Da mesma forma, Kant defendeu que as mulheres não seriam capazes de operar com uma moral calcada no dever ou em princípios formais e abstratos. Contra estas idéias, o feminismo igualitário liberal advoga que o sexo natural não é o que define as capacidades de cada um. São o processo de socialização e a educação que determinam a hierarquia entre os indivíduos. Daí que a estratégia de reversão da situação de subordinação das mulheres seria a supressão de leis discriminatórias que impediriam o acesso das mulheres ao espaço público e a elaboração de uma prática educativa não sexista.

O feminismo igualitário do tipo marxista, por sua vez, entende que a causa da subordinação feminina adviria da própria organização econômica, e seu lugar de expressão, portanto, seria a economia e o mundo do trabalho. Por conseguinte, o caminho para a libertação das mulheres estaria na abolição da propriedade privada e na transformação da divisão sexual do trabalho. O feminismo marxista, no entanto, como oportunamente assinalou Christine Delphy7, foi levado a contradições incontornáveis ligadas à própria dificuldade de reconhecimento, por parte do marxismo dito “ortodoxo”, do trabalho doméstico como efetivo trabalho, como também da divisão dos sexos como fato não natural.

Na década de 1960, o movimento feminista ressurge, contestando essas duas grandes perspectivas igualitárias que acabamos de mencionar. Doravante, não é a igualdade, mas a diferença que se converte no mote principal do discurso feminista. As mulheres são distintas dos homens, seja por razões políticas, seja em decorrência de sua própria “natureza”. No primeiro caso, temos o feminismo dito “radical”, corrente que estima ser a causa última da dominação masculina sobre as mulheres o patriarcado...

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