Direitos fundamentais, federalismo fiscal e emendas constitucionais tributárias

AutorJosé Marcos Domingues
CargoProfessor Titular de Direito Financeiro da UERJ e dos Cursos de Pós-graduação da PUC-Rio, PUC-SP e FGV-Rio.
Páginas222-232

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Introdução

O tema deste ensaio diz respeito aos direitos fundamentais, uma de suas técnicas de garantia, que é o Federalismo Fiscal, e aos limites do poder de emenda deferido ao Constituinte Derivado pelo Constituinte Originário.

Se todo o Poder nasce limitado, não é diferente com o poder de emenda.

E em se tratando de direitos fundamentais, que precedem o Estado, pois que ínsitos à condição humana, neles até mesmo o Constituinte Originário encontra os seus próprios limites, pois não se pode conceber uma Constituição merecedora desse nome que, por exemplo, não respeite a Vida, a Liberdade, a Igualdade, a Segurança ou a Cidadania, esta, pressuposto da noção mesma de Estado a ser constituído, e aquelas, atributos da Existência e Dignidade da Pessoa Humana.

Assim é que – pré-existindo à própria Constituição – os Direitos Fundamentais não só não poderiam ser por ela desconhecidos como, com maior razão, não podem ser estorvados por alterações à Carta Magna.

Os direitos fundamentais e as cláusulas pétreas

Toda constituição tem um núcleo duro, intangível – as cláusulas pétreas – que retratam as opções essenciais do Povo e do Estado por ela instituído, entre as quais haverão de estar os direitos fundamentais.

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A nossa constituição é bastante didática a respeito: no artigo 1º prevê um elenco de cinco fundamentos do Estado brasileiro (soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político), que são desdobrados no Título II em direitos e garantias fundamentais – individuais, sociais, políticos e os pertinentes à nacionalidade.

Nota-se uma evidente conexão entre tais direitos e garantias fundamentais e as cláusulas pétreas do artigo 60 da Carta, que rebuscam por sua vez os pré-citados fundamentos da República Federativa do Brasil.

A soberania do povo se exerce pela cidadania que se exprime primordialmente, embora não exclusivamente, no voto direto, secreto, universal e periódico – cláusula pétrea, como pétrea também é a forma federativa que enseja diversas instâncias de pleitos e de providências para o exercício e atendimento à cidadania.

Situa-se aqui o federalismo fiscal e, nele, um dos maiores dilemas enfrentados pelo Constituinte – que é o financiamento por meios equânimes e razoáveis das tarefas finalisticamente assinadas aos Entes da Federação nos três respectivos níveis de governo.

Superada a utopia do imposto único, a Economia, a Ciência das Finanças e o Direito conceberam os sistemas tributários como a solução a um tempo lógica e justa para o financiamento das necessidades públicas com respeito à princípio cardeal de igualdade, de sorte que cada qual acuda ao chamamento estatal em função não só das exigências do bem comum, mas também tendo em vista a possibilidade do destinatário da ação estatal.

No caso dos países federais, leciona Aliomar Baleeiro, “o problema é ainda mais complexo e árduo, porque devem alimentar-se dos impostos três competências diferentes – a federal, a estadual e a municipal”1; ou, acrescente-se, porque as três esferas de poder devem conter-se dentro do que lhes seja lícito requisitar dos cidadãos em função das tarefas que cada qual deve desenvolver em prol da Sociedade.

A Federação surge, mormente em países de dimensões territoriais avantajadas, não só historicamente para garantir a unidade de ação em face de interesses comuns a Estados-Membros (que foi a causa determinante da fundação das federações norte-americana e alemã), mas, hodiernamente, para garantir à população diversas instâncias públicas de acesso ao poder e o correspondente exercício da liberdade.

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Ora, do ponto de vista financeiro, “em face de sua extraordinária aptidão para destruir a Liberdade, o poder tributário já nasce rigidamente limitado pela Constituição, sendo a partilha de receita um dos instrumentos mais eficientes para a garantia dos direitos fundamentais”2.

Para tanto, é essencial que se estabeleça, antes, uma adequada distribuição vertical de tarefas constitucionalmente determinadas, pois à despesa com os respectivos serviços públicos é que deverá corresponder uma Receita bastante. Nas palavras de Alexander Hamilton3, “(...) um poder geral de tributar, de uma maneira ou de outra, deve estar intimamente combinado à estrutura do governo”.

Ora, numa federação, naturalmente composta de Estados heterogêneos, não será bastante a mera atribuição de competência tributária aos entes federados, mas por princípio de solidariedade, especialmente num país de fortes contrastes, como o Brasil, impõe-se a redistribuição da riqueza nacional, não apenas no plano individual pela tributação progressiva, mercê da aplicação do princípio da capacidade contributiva, mas também no plano sócio-político, através das transferências financeiras, ou repartição das receitas tributárias, de que tratam os artigos 157 a 162 da Constituição.

É preciso ter em mente que determinados Estados-Membros e muitos Municípios não são viáveis senão no seio da federação, por lhes faltar lastro econômico; estabelecem-se e sobrevivem por força do interesse nacional de atender suas peculiaridades e de tê-los juntos em União, graças aos laços culturais, sociais e políticos comuns que, ao mesmo tempo, determinam a sua autonomia. E não há autonomia política sem autonomia financeira: “(...) não basta ao Estado-Membro a possibilidade de auto-organizar-se (...); é imprescindível a existência de autonomia financeira4”. Assim também, não há democracia política sem democracia financeira.

Porém, há que haver uma correta interpretação do que deva representar essa redistribuição vertical de recursos: a esse bônus político5 deve corresponder um ônus político-jurídico, que é a responsabilidade fiscal,Page 225com a implantação de uma tributação regional e local tão justa quanto eficaz, a determinar a aplicação do princípio da generalidade tributária, o aproveitamento legislativo dos campos de incidência tributária e das respectivas bases imponíveis, a minimização de renúncias fiscais, a cobrança eficiente dos tributos; e, ainda, a otimização do gasto público, quer quando financiado pelos tributos próprios, quer quando pelas transferências federativas.

A Constituição de 1988, acusada de inviabilizar as finanças federais em função da descentralização do chamado bolo tributário, em favor dos Estados e, sobretudo, dos Municípios, teve a preocupação exatamente de, através desse processo...

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