Estado federal e poder municipal

AutorAndré Carlos da Silva
Páginas351-378

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1 Introdução

O tema do presente artigo1 é o Federalismo brasileiro, em especial, a presença do Município compondo esse sistema federativo.

Diferentemente de muitas federações, a brasileira, assim como a belga, é um sistema de três níveis: União, Estados e Municípios. Se, contudo, considerar-se o Distrito Federal, o Estado Federal brasileiro alcança a composição de quatro níveis. No Brasil, os municípios foram incorporados, juntamente com os estados, como partes integrantes da federação, com a Constituição Federal de 1988.

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Assim, a Constituição Federal de 1988 gerou um novo ordenamento federativo. Os constituintes não só estabeleceram as bases do Estado democrático como também instituíram um novo “pacto federativo”. Em quase todas as constituições (exceto na Carta de 1937), os municípios foram definidos como organizações políticas autônomas. Contudo, somente a Constituição de 1988 atribuiu uma considerável autonomia aos municípios, conferindo-lhes o status de ente federativo.

Para desincumbir-se desse objetivo, o texto está estruturado em quatro capítulos principais. O primeiro – O município nas constituições brasileiras – se ocupa em registrar, de forma panorâmica, o desenvolvimento do Município no contexto da estrutura do Estado brasileiro, desde a inauguração do nosso Estado federal até o presente momento, com a promulgação da Constituição Federal de 1988. O segundo – O federalismo municipal assimétrico – procura demonstrar que a tentativa federal de uniformização, por meio do Fundo de Participação dos Municípios, trouxe mais assimetria do que simetria no contexto municipal. O terceiro – A distribuição do poder – dedica-se ao tema da distribuição de competência para o município, na forma estabelecida na Constituição Federal. O último – O município como ente federativo– enfrenta o tema, ainda controvertido no ambiente doutrinário brasileiro, a respeito de ser ou não o município participante do sistema federal nacional.

Conta ainda o trabalho com esta Introdução e uma Conclusão com considerações sobre o tema em foco.

2 Município nas constituições brasileiras

O município, na condição de unidade político-administrativa, já ocupava um lugar de destaque no processo de expansão do Império Romano, por ocasião da República. Se, de um lado, os vencidos ficavam sujeitos às leis romanas, de outro, eram-lhes concedidas algumas prerrogativas, tais como: alguns direitos privados e o direito de eleger seus governantes para dirigir a própria cidade. As cidades que alcançavam essa posição no Império Romano eram consideradas municípios2.Page 353 Por isso, embora se reconheça, em tempos mais remotos, a existência de agrupamentos humanos, famílias, aldeias e tribos, o título de município somente veio a ser concedido a algumas cidades dominadas pelos exércitos de Roma3.

No apagar das luzes do século XV, quando se descobriu o Brasil, os portugueses trouxeram a instituição municipal para o Brasil-Colônia. Em 22 de janeiro de 1532, é fundado, por Martim Afonso, o primeiro município brasileiro: São Vicente. Daí se dizer que, entre nós, o município nasceu antes do Estado e que, portanto, é a base e fundamento de nossa nação4.

Desde a sua origem, o município surge sob o signo da constituição do poder local, com a vocação para atender as demandas das comunidades que lhe são próximas. É, pois, o locus mais próximo entre o aparelho estatal e o cidadão. Portanto, lugar onde as demandas sociais chegam com menos intermediários ao conhecimento do Poder Público. Sob essa perspectiva, o município se apresenta como um lugar onde reside a força dos povos livres5. As pessoas não se inserem imediatamente no Estado Federal. Antes, ordenam-se nas comunidades a que pertencem, sendo uma delas o município. Nesse contexto, o município é uma comunidade natural, necessária e sociológica, e não uma realidade puramente jurídica. Por isso, o papel do Estado é de reconhecer e de admitir e não de criar, visto que, na ordem do ser e do tempo, o município precede o próprio Estado6.

A trajetória do município nas Constituições brasileiras, a partir da instalação, entre nós, do Estado Federal, conforme se verá adiante, é marcada por quatro pontos principais, a saber: a) um significativo aumento da relevância do município no Estado Federal brasileiro; b) um incontestável aumento numérico do município no Estado Federal brasileiro; c) um aumento quantitativoPage 354 e qualitativo das competências do município, bem como um progressivo processo de autonomia até culminar com o ente que compõe a federação; e d) a oscilação do pêndulo de estadualização para federalização do município.

1. 1 Constituição Federal de 1891

A Constituição de 1891 confirma o sistema federal brasileiro. A federação foi criada a partir das 20 (vinte) províncias herdadas do sistema unitário, contando hoje com 27 Estados, o Distrito Federal e mais de 5.6007 municípios.

O art. 2.º da Constituição Federal de 1891 dispunha que “Cada uma das antigas províncias formará um Estado, e o antigo município neutro constituirá o Distrito Federal, continuando a ser a capital da União, enquanto não se der execução ao disposto no artigo seguinte.” Por sua vez, o art. 68.º do mesmo texto Constitucional estabelecia que “Os Estados organizar-se-ão de forma que fique assegurada a autonomia dos municípios, em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse”.

Firmados nesses comandos constitucionais, os Estados esgotaram, na amplitude de sua autonomia, a organização municipal, submetendo o governo local aos rigores do controle hierárquico. Os Estados fundaram suas ações organizativas concentrados no verbo ”organizar-se-ão” e deixaram de observar o conteúdo da expressão, também constitucional, “assegurada a autonomia dos municípios”. Assim, teve lugar a chamada “organização vertical do Município”.

Desde a inauguração do Estado Federal no Brasil, suscitou-se a dúvida a respeito da possibilidade da existência de uma organização diferenciada entre osPage 355 entes da federação8. Paraíba e Minas Gerais tentaram se organizar por meio de distritos especiais e cantões, respectivamente, o que não veio a efetivar-se9.

Conquanto trate-se de casos isolados, o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, no entanto, obtiveram êxito na criação da chamada comunidade jurídica descentralizada”, um ordenamento jurídico parcial, responsável pela expedição de normas dotadas de validade na circunscrição local.

As controvérsias hermenêuticas em torno do art. 68.º da Constituição Federal de 1891, as tentativas de organização municipal diferenciada e as experiências de descentralização por parte do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina criaram o ambiente propício para se iniciar um processo de questionamentos nos ambiente político, doutrinário e também no Supremo Tribunal Federal. O objetivo era desvendar se a autonomia municipal seria ou não um princípio constitucional da União.

Venceu a corrente que defendia que a autonomia municipal era um princípio constitucional da União. A materialização desse pensamento aparece na Reforma Constitucional de 1926, que incluiu a autonomia municipal entre os princípios constitucionais da União (art. 6.º, II, alínea “f ”), cuja eficácia ficaria assegurada pelo mecanismo drástico da intervenção federal da União no Estado.

A Emenda Constitucional, de 3 de setembro de 1926, alterou vários dispositivos. Em relação aos municípios, merece destaque a alteração efetivada no art. 6º, cujo inciso II, alínea “f ”, dispõe o seguinte:

Art. 6.º O Governo federal não poderá intervir em negócios peculiares aos Estados, salvo:

[...]

II – para assegurar a integridade nacional e o respeito aos seguintes princípios constitucionais:

[...]

f) a autonomia dos municípios.

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A intervenção federal no Estado, para proteger a autonomia municipal, deslocava para o domínio dos órgãos da União a tarefa de interpretar a autonomia municipal pelo preenchimento federal do campo indefinido da norma constitucional. Assim, a autonomia local passaria a comportar interpretação federal e não mais a interpretação que lhe desse o Estado-Membro no exercício do poder de organização do município.

Nesse contexto, a qualificação da autonomia municipal como princípio constitucional da União representa uma limitação à plenitude da autonomia do Estado-Membro e traduzia claro rompimento com a concepção ortodoxa do federalismo republicano de 1891. De qualquer modo, o pêndulo deslocou-se do Estado-Membro para a União. Mas, o princípio da centralização organizativa permaneceu ainda mais forte, visto que, após a reforma constitucional de 1926, a União mesma voltava os seus tentáculos para o município.

1. 2 Constituição Federal de 1934

Sob o ponto de vista do processo de emancipação do município da tutela organizatória do Estado-Membro, a Constituição de 1934 representou um significativo avanço. O texto dessa Constituição espelha a convicção de que não bastaria ao município a autonomia política, vinculada a escolha eletiva dos representantes locais, conforme preceituava a Constituição de 1891, mas se impunha acrescentarlhe a autonomia financeira, as receitas próprias, de modo a alargar a substância da autonomia. Nesse contexto, assim estabelece o § 2º do art. 8º da Constituição de 1934: “art. 8º, § 2º. O imposto de indústrias e profissões será lançado pelo Estado e arrecadado por este e pelo Município em partes iguais”.

Ainda o parágrafo...

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