É a favela o modelo de um 'urbanismo insurgente'? Pistas para um estudo das formas disciplinar e securitária de produção do espaço urbano de Salvador (1946-1988)

AutorManoel Maria do Nascimento Jùnior
Páginas140-168
Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, n. 246, p. 140-168, jan./abr., 2019 | ISSN 2447-861X
É A FAVELA O MODELO DE UM "URBANISMO INSURGENTE"?
PISTAS PARA UM ESTUDO DAS FORMAS DISCIPLINAR E
SECURITÁRIA DE PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO DE SALVADOR
(1946-1988)
Is Favela a model for an “insurgent urbanism”? Clues for a study of the disciplinary
and securitary forms of production of the urban space of Salvador (1946-1988)
Manoel Nascimento (UFBA)
Informações do artigo
Recebido em 28/04/2018
Aceito em 21/05/2018
doi>: https://doi.org/10.25247/2447-861X.2019.n246.p140-168
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Commons Atribuição 4.0 Internacional.
Como ser citado (modelo ABNT)
NASCIMENTO, Manoel. É a Favela o modelo de um
"urbanismo insurgente"? Pistas para um estudo das
formas disciplinar e securitária de produção do espaço
urbano de Salvador (1946-1988). Cadernos do CEAS:
Revista Crítica de Humanidades, Salvador, n. 246,
jan./abr., p. 140-168, 2019. DOI:
https://doi.org/10.25247/2447-861X.2019.n246.p140-168
Resumo
Tendo como base a distinção entre formas disciplinares e
securitárias de exercício da soberania, tal como conceituadas
por Michel Foucault, este artigo pretende, a partir de uma
revisão bibliográfica sobre o processo de formação do território
urbano de Salvador no século XX, responder às seguintes
questões: é a favela um "urbanismo insurgente"? Pode a favela
constituir uma alternativa ao urbanismo oficial? Em que medida
a ação dos invasores, dos "favelados", compromete este
urbanismo oficial? E em que medida o reforça? Conclui-se que:
a) Sim, pode ser um “urbanismo insurgente” desde que
considerada como expressão dos fenômenos da ocupação de
terra urbana por massas proletárias e como conjunto de ações
mais ou menos descoordenadas de su jeitos coletivos diversos;
b) As invasões e favelas, sendo parcelares, não constituem uma
alternativa global ao urbanismo e ao planejamento urbano
oficiais, mas a proliferação de invasões e favelas num tempo
histórico curto pode indicar que as muitas ações individuais e
coletivas formadoras das invasões e favelas ofereceram um
sentido alternativo ao desenvolvimento urbano da cidade.
Palavras-chave: Disciplina. Segurança. Desenvolvimento
urbano. Invasões. Salvador.
Abstract
Based on the distinction between disciplinary and securitary
forms of exercising sovereignty, as conceptualized by Michel
Foucault, this article intends, based on a bibliographical review
about the process of formation of the urban territory of Salvador
in the 20th century, to answer the following questions : is the
favela a kind of "insurgent urbanism"? Can the favela be an
alternative to the official urban planning? To what extent does
the action of the invaders, the "favelados", compromise this
official urbanism? And to what extent does it strengthen it? We
conclude that: a) Yes, it can be an "insurgent urbanism" as long
as it is considered as an expression of the phenomena of urban
land occupation by proletarian masses and as a set of more or
less uncoordinated actions of diverse collective subjects; b)
Invasions and favelas, being parcellary, are not a global
alternative to official urbanism and urban planning, but the
proliferation of invasions and favelas in a short h istorical time
may indicate that the many individual and collective actions that
shaped the invasions and favelas offered an alternative direction
to urban development.
Keywords: Discipline. Security. Urban Development.
Invasions. Salvador.
Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, n. 246, p. 140-168, jan./abr., 2019
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É a Favela o modelo de um "urbanismo insurgente"? Pistas para um estudo das formas... | Manoel Nascimento
Introdução
O espaço urbano é solo de permanente disputa. Sua produção, seu uso e sua
apropriação, planejados ou "espontâneos", tudo isto é marcado por um jogo de forças onde
sujeitos antagônicos digladiam-se pela impressão de suas características nos territórios onde
existem. A analítica d estas relações é capaz de apontar o sentido em que se dão estas
disputas em cada momento, e permite compreender de que forma o poder se exerce neste
jogo de forças, a quem beneficia, o que é produzido por meio de seu exercício.
Isto num campo teórico bastante abstrato. Se se desce ao factual, ao histórico (em
sentido forte), ao comezinho, ao cotidiano, o que se vê é uma verdadeira guerra entre os
detentores da propriedade da terra urbana e todos quantos ameacem o exercício ilimitado
de seu direito. Se se leva às últimas consequências a inversão foucaultiana do d ito
clauzewitziano, é exatamente disto que se trata. E, no campo dos adversários da propriedade
ilimitada, entram tanto os invasores e "favelados" quanto a administração pública, o Estado;
cada qual, a seu modo, tenta impor limites ao exercício da propriedade do solo urbano, tenta
desimpedir-lhe o acesso, tenta quebrar as barreiras à sua mais livre apropriação e uso, tenta,
enfim, produzir cidades diferentes daquela feita para a pura circulação de bens e reprodução
da força de trabalho.
Este é, tal como o conhecemos, o discurso "progressista" sobre as cidades, em
especial no que diz respeito à moradia e ao planejamento urbano. Mas até que ponto é
"progressista" este discurso? Não seriam as resistências e as contracondutas de um dado
momento histórico, de uma dada correlação de forças, as bases para o surgimento de novas
disciplinas, de novas governamentalidades?
É este o debate que o presente artigo tenta provocar, suscitar, fazer emergir. Tendo
como base a distinção entre formas disciplinares e securitárias d e exercício da soberania, tal
como conceituadas por Michel Foucault (1999, 1999, 2008), este artigo pretende, a partir de
uma revisão bibliográfica sobre o processo de formação do território urbano de Salvador no
século XX, responder às seguintes questões: é a favela um "urbanismo insurgente"? Pode a
favela constituir uma alternativa ao urbanismo oficial? Em que medida a ação dos invasores,
dos "favelados", compromete este urbanismo oficial? E em que medida o reforça?
A primeira seção deste artigo é dedicada a estabelecer o marco teórico adotado,
mediante revisão bibliográfica da obra de Michel Foucault em busca dos conceitos de

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