O Que é o Fato?

AutorFrancesco Carnelutti
Ocupação do AutorAdvogado e jurista italiano
Páginas53-71

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Nos tempos longínquos da minha juventude, um dos primeiros clientes, sobre a pele dos quais consumou-se aos poucos a minha ignorância da lei e, o que mais conta, da vida, foi um engenhosíssimo larápio cubano, o qual um dia, discorrendo comigo da sua causa (processo), aplicou o princípio da divisão do trabalho entre nós e essa fórmula: “o direito o faz o advogado; mas o fato o sabe o imputado”. Assim se manifestava na mente de um profano a oposição do direito ao fato, familiar a todos os juristas; e melhor se diria a todos aqueles que, com uma palavra mais compreensível, tal de não deixar fora nenhum daqueles que trabalham, também mate-rialmente, com o direito, os alemães chamaram Rechtswahrer.

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Porém, se queremos falar rigorosamente, a oposição não pode ser posta entre o direito e o fato, mas sim entre o fato e a lei. Formulada em termos tradicionais, a distinção contém o costumeiro erro, relativo à confusão entre direito e lei: o direito, como temos dito e como veremos melhor daqui a pouco, mais do que a lei, representa a síntese da lei e do fato; é provável que essa síntese seja a mais difícil para explicar.

Por isso, depois de ter conhecido a lei, o fato deve chamar a nossa atenção.

Fato: há uma palavra de uso mais comum? Acredito que somente o que possa disputar-lhe o primado. Uma e outra se assemelham a certas moedas nas quais, de tanto circular, não se distingue mais nem a cabeça nem a cruz. Todos se valem dela acreditando conhecer seu significado; contudo, se alguém pergunta o que querem dizer, não sabem a resposta com a desejada presteza.

Sem dúvida uma curiosidade da ciência do direito está nisso, de que todos os juristas, os quais falam continuamente de fato jurídico, ninguém se preocupa em explicar, além do adjetivo jurídico, o substantivo fato, que o sustenta. O fato em si mesmo é uma espécie de ilha misteriosa no reino

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do direito. Somente nos últimos anos alguém entre nós ousou violar seu segredo.

O primeiro passo para a meta consiste, se não me engano, no confronto entre os dois termos enunciados pouco antes: fato e coisa. Frequentemente um e outro são usados indiferentemente; mas uma tal superficialidade, se queremos superar a esfera do empirismo, não se deveria tolerar.

A confrontação compreende, juntos, unidade e diferença. O que devemos procurar pode-se chamar, na linguagem escolástica, o genus proximum e a differentia specifica entre os dois termos: factum e res.

Por pouco que vale a minha cultura, não conheço um só filósofo ou jurista moderno o qual tenha sentido a necessidade de estabelecer esse ponto de partida para suas pesquisas.

Coisa e fato são duas espécies ou, melhor, dois aspectos de um mesmo conceito, cuja fórmula é objeto.

Linda palavra! Aliquid jacet ob. Algo está na frente. O objeto se refere ao sujeito; tivemos já ocasião de ver que, no entanto, o homem merece o nome de sujeito, enquanto é capaz de observar. Mas o que lhe está na frente? Responder-se-á, o

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mundo. Certamente. Porém, o mundo é grande demais para podê-lo ver. Os sentidos do homem se assemelham às janelas de uma casa, onde o mundo todo não consegue penetrar. O quadro que se apresenta diante das janelas: este é, propriamente, o sujeito.

Tanto vale dizer que o objeto se determina mediante a atenção. Esse sim é um conceito que a filosofia moderna há com requinte elaborado; aludo, sobre todos, a Heidegger, sob o aspecto lógico, e a Bergson, do lado fisiológico. O paradigma da atenção é a atitude do caçador quando fecha um olho para mirar. Com a finalidade de ver uma coisa, é preciso não ver as outras. O mundo se divide, assim, numa multidão de objetos. Objeto é aquilo que no mundo podemos ver.

Ora, entendeu-se o caráter principal do objeto como relatividade: um objeto é, além da terra, o céu para o astrônomo ou, ao invés, o micróbio para o biólogo que o observa.

Um objeto pode ser observado imóvel ou em movimento. Assim, formula-se simplesmente a diferença entre os termos que estamos observando: fato é a coisa que se move; coisa, o fato quando está parado.

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Quem não percebe, todavia, que essa simplicidade esconde algum dos mais graves problemas da filosofia? Estar imóvel ou mover-se, que quer dizer? O problema do movimento é, em primeiro lugar, o problema da vida. Assim o estudo do direito, como de qualquer outra matéria, nos conduz, insensivelmente, ao limiar do mistério.

O problema do tempo é um daqueles que a filosofia antiga não teve a possibilidade de resolver. Também para a filosofia moderna permanece, até o último século, a dificuldade. Kant tem o grandíssimo mérito de nos ter dito o que o tempo não é, mas também não o que é; sabemos, depois dele, que o tempo não é realidade; mas não como se explica que não seja realidade. Até o último século, disse; mas então o que aconteceu, no último século, que nos possa ajudar a superar a dificuldade? Bergson teve uma admirável intuição quando percebeu o serviço que o processo cinematográfico poderia dar para a investigação do pensamento. Enquanto à...

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