A Farra do Boi: humanidade, animalidade e as sensibilidades jurídicas em uma decisão judicial

AutorJoão Francisco Kleba Lisboa
CargoDoutor em Antropologia Social pela Universidade de Brasília. Mestre e Graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
Páginas196-221
Recebido em: 26/08/2019
Revisado em: 27/04/2020
Aprovado em: 27/10/2020
http://doi.org/10.5007/2177-7055.2020v41n86p196
Direito autoral e licença de uso: Este artigo está sob uma Licença Creative Commons. Com essa licença, você pode
compartilhar, adaptar, para qualquer fim, desde que atribua a autoria da obra e forneça um link para a licença, e indicar
se foram feitas alterações.
A Farra do Boi: humanidade, animalidade e as
sensibilidades jurídicas em uma decisão judicial
Farra do Boi: humanity, animality and legal sensibilities in a judicial decision
João Francisco Kleba Lisboa1
Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil
Resumo: A farra do boi, como ficou conhecida
a prática tradicional de algumas comunidades
pesqueiras do litoral catarinense, atualmente
proibida pela justiça sob alegação de maus-tra-
tos aos animais, é um caso propício para obser-
var os contrastes entre diferentes sensibilidades
jurídicas, assim como as profundas diferenças
entre o fazer antropológico e o trabalho dos
julgadores. Para isso, o artigo busca se funda-
mentar em noções que acompanham a forma-
ção moderna do pensamento ocidental, como
as classificações dicotômicas entre bárbaro e
civilizado, natureza e cultura, rural e urbano,
chegando à Constituição Federal e seus artigos,
que garantem a proteção tanto da cultura quanto
do meio ambiente.
Palavras-chave: Farra do Boi. Sensibilidade
Jurídica. Constituição Federal.
Abstract: The farra do boi, as become known
the traditional practice of some fishing commu-
nities on Santa Catarina coast, which is curren-
tly banned by justice on the grounds of animal
abuse, is a propitious case to observe the con-
trasts between different legal sensibilities, as
well as the profound differences between the
anthropological making and the work of the
judges. For this, the article seeks to be based on
notions that accompany the modern formation
of Western thought, such as the dualistic classi-
fication between barbarian and civilized, nature
and culture, rural and urban, reaching the Fede-
ral Constitution and its articles, that guarantee
the protection of both culture and environment.
Keywords: Farra do Boi. Legal Sensibilities.
Federal Constitution.
Seqüência (Florianópolis), n. 86, p. 196-221, dez. 2020 197
João Francisco Kleba Lisboa
1 Introdução
Quem nos salva da bondade dos bons?
(AGOSTINHO RAMALHO MARQUES NETO)
Com este ensaio, pretende-se contribuir para um debate cuja rele-
vância extrapolou a esfera local – o litoral de Santa Catarina, região em
que nasci e me criei – para atingir abrangência nacional e uma dimensão
ética, por assim dizer, universal. Refiro-me à prática daquilo que os nati-
vos locais chamam de “boi do campo”, ou “boi no pasto”, ou mesmo ape-
nas “boi” ou “farra”, e que ficou conhecida nacionalmente como “farra do
boi”. Essa prática decorre de uma tradição cultural trazida pelos açorianos
que colonizaram o litoral do estado em meados do século XVIII e que
atualmente é proibida pela justiça, após julgamento de grande repercus-
são na mais alta corte do país, o Supremo Tribunal Federal (STF). Apesar
de proibida, a farra do boi continua sendo praticada até os dias de hoje,
principalmente durante os períodos de Páscoa e final de ano, em meio às
tentativas das autoridades locais de reprimi-la. O assunto passou a tomar
as páginas de jornais nos anos de 1970, sendo que o auge da “polêmica”
em torno da farra se deu na década seguinte, quando recebeu grande des-
taque em veículos nacionais como O Estado de São Paulo, Folha de São
Paulo e Revista Veja, sendo que esta última o elegeu como um dos assun-
tos do ano de 1988 (FLORES, 1998, p. 58-61). De certa forma, os posi-
cionamentos em torno da farra do boi polarizaram-se entre um discurso
de repúdio aos maus-tratos contra os animais (ou defesa dos direitos dos
animais) e um discurso de direito à manutenção da cultura tradicional (ou
defesa da farra-do-boi). No campo jurídico, esse embate encontrou seus
dispositivos correspondentes na Constituição Federal de 1988, com os ar-
tigos 215 e 216 de um lado e 225 e seus parágrafos do outro. Estava em
jogo a proibição ou não de um costume local em que o boi era sacrificado
em uma espécie de festa comunitária após ser solto em espaço aberto para
que as pessoas se aventurassem a chegar perto do animal arredio. Ofereço
aqui uma abordagem que faz uso de referenciais teóricos da antropologia

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT