A Farmácia dos Direitos Humanos: Algumas observações sobre a prisão de Guantánamo

AutorMoysés da Fontoura Pinto Neto
CargoEspecialista e Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC-RS, Brasil. Professor do Departamento de Ciências Penais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRS, Brasil
Páginas31-38

Page 31

1. Caminho para Guantánamo

Em 11 de janeiro de 2002 ocorreu o primeiro deslocamento de prisioneiros para a Base Naval de Guantánamo, que fica ao sudeste de Cuba, cedida por aluguel aos Estados Unidos anteriormente à revolução socialista. Sob a gestão do Presidente George W. Bush, os Estados Unidos da América mantêm, atualmente, cerca de 800 detentos na base, oriundos de diversas nacionalidades, acusando-os de constituírem o “pior do pior” (Daskal, 2007). A situação jurídica desses prisioneiros, criada recentemente sob o pretexto de “Guerra contra o Terror”, é de combatenteinimigo (enemy combatant), sem fazerem jus aos direitos e garantias previstos na Constituição Norte-Americana e sequer às convenções de guerra. Seis anos após a remoção dos prisioneiros para o local, não foi realizado sequer um julgamento (Baldwin, 2008).

Em “Estâncias”, Giorgio Agamben assinala que a ciência iconológica, nascida por impulso de Aby Warburg, “recorre a textos literários para a interpretação das imagens”. Agamben aconselha que “seria desejável que, na perspectiva de uma aproximação global com a história da cultura, (...), também as ciências filológicas começassem a se servir das imagens (especialmente as ilustrações) como instrumentos auxiliar para interpretação dos textos literários” (Agamben, 2007:123). Aliás, o filósofo italiano não deixa de, desde o início dessa obra, correlacionar as tonalidades emotivas que investiga com imagens – a exemplo de “Melencolia I”, de Dührer, ou “Pigmaleão e a Imagem”, ilustração do poema de Jean de Meung.

A foto que colocamos logo abaixo1, oriunda da película “The Road to Guantanamo”, é sintomática, portanto, de uma condição que deve ser analisada teoricamente, servindo como instrumento auxiliar da interpretação de um fenômeno contemporâneo.

Page 32

[VEJA A FOTO NO PDF ADJUNTO]

Vê-se, desde logo, que à frente de um soldado uniformizado constam prisioneiros sentados, com sacos cobrindo seus rostos e mãos atadas atrás das costas. É apenas essa imagem que servirá para nossa reflexão sobre a condição atual desses prisioneiros, fato que assombra as políticas criminais contemporâneas por advir exatamente da maior potência mundial e, simultaneamente, de uma democracia de longa vida.

2. O Estatuto Jurídico dos Prisioneiros de Guantánamo

Hannah Arendt já vislumbrava, desde Eichmann em Jerusalém (1999: passim), que a condição de apátrida era a zona-limite dos direitos humanos. Esses, que nasceram com pretensão de universalidade metafísica, baseados em uma suposta natureza racional humana, na realidade estavam intrincados no dispositivo da cidadania que, para sua efetivação, dependia do poder do Estado. Por isso, a primeira providência dos nazistas quando da deportação dos judeus para os campos de concentração era retirar sua nacionalidade, colocando-os nessa situação de indistinção sem amparo nos ordenamentos jurídicos nacionais.

Agamben percebe, aliás, que desde a sua proclamação primeira, na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), os direitos humanos carregam essa ambigüidade de referirem, dividindo-se, ao homem e ao cidadão (Agamben, 2002:133). Como assinala Hannah Arendt,

nenhum paradoxo da política contemporânea é tão dolorosamente irônico como a discrepância entre os esforços de idealistas bem-intencionados, quePage 33 persistiam teimosamente em considerar ‘inalienáveis’ os direitos desfrutados pelos cidadãos dos países civilizados, e a situação dos seres humanos sem direito algum (1989:312).

E, mais adiante, com precisão:

Os Direitos do Homem, supostamente inalienáveis, mostraram-se inexeqüíveis – mesmo nos países cujas constituições se baseavam neles – sempre que surgiam pessoas que não eram cidadãos de algum Estado soberano. A esse fato, por si só já suficientemente desconcertante, deve acrescentar-se a confusão criada pelas inúmeras tentativas de moldar o conceito de direitos humanos no sentido de defini-los com alguma convicção, em contraste com os direitos do cidadão, claramente delineados (1989:327).

O estatuto de “combatente-inimigo”, ferramenta do Governo George W. Bush exercida na “Guerra ao Terror”, retira do indivíduo preso a sua condição de titular de quaisquer direitos, criando uma zona nublada de indistinção entre a vida e o direito...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT