A fantasia do capital social

AutorFernando Shayer
Páginas138-150

Page 138

Os bens e direitos que constituem o patrimônio de uma sociedade respondem pelas suas obrigações. Como, por meio do exercício do direito de voto, os acionistas têm a prerrogativa de fazer com que tais bens sejam distribuídos a eles, daí surge um potencial conflito com a sociedade e seus diversos stakeholders, mormente credores, que podem ter interesse em tais bens. A Lei Societária interfere nesse conflito ao regular as circunstâncias e os limites em que os bens patrimoniais podem ser distribuídos aos sócios, incluindo-se por meio de operações de resgate, amortização, recompras de ações e distribuições de lucros.1A disciplina legal brasileira referente às distribuições dos bens do patrimônio social aos sócios é essencialmente baseada no instituto do capital social. As premissas com base nas quais essa disciplina é construída são fundamentalmente falsas e acarretam um modelo ineficiente, distante do melhor interesse da sociedade e que não confere tutela efetiva aos credores sociais. É o argumento neste artigo.

Para tanto, no item 1, como pano de fundo, questiono em que medida a Lei Societária deve conceder aos credores sociais proteções adicionais àquelas conferidas pelas demais leis que regulam o relacionamento entre credores e devedores e apresento os parâmetros que devem estar presentes para tornar esse regime de proteção eficiente à sociedade e aos seus diversos stakeholders. No item 2 abordo os principais elementos do regime societário brasileiro de proteção aos credores, notadamente no que concerne ao instituto do capital social, e discuto as ineficiências desse modelo. Por fim, no item 3 apresento os elementos principais de um modelo alternativo de regulação dessas distribuições.

Page 139

1. A tutela dos credores sociais pela Lei Societária

O relacionamento entre credores e devedores (incluindo-se sociedades por ações) é amplamente regulado por meio de diversas leis. Nos termos do art. 477 do CC, para se defender na hipótese de diminuição patrimonial do devedor, o credor quirografário pode recusar-se a cumprir sua obrigação, ou requerer um reforço de garantias. O credor pode também pleitear a anulação de negócio jurídico realizado pelo devedor insolvente, ou que venha a se tornar insolvente por meio do negócio impugnado, conforme o art. 158 do CC. No contexto falimentar, conforme os arts. 129 e ss. da Lei de Falências, são ineficazes determinados negócios realizados pelo devedor no período suspeito.

Credores são, assim, protegidos com relação aos negócios abusivos ou danosos que a sociedade possa fazer quando sua situação financeira se encontra demasiadamente fragilizada. Além dessas leis, é também praxe na vida cotidiana das sociedades que uma boa parcela de seus credores (alguns deles, quirografários) proteja a qualidade de seus créditos por meio de cláusulas contratuais restritivas (covenants) que limitam a distribuição dos bens patrimoniais aos sócios antes da satisfação parcial ou total dos créditos.

Apesar (e além) dessas proteções, a Lei Societária estabelece um regime próprio de tutela aos credores, segundo o qual, via de regra, ela impede os sócios de acessarem os bens patrimoniais da sociedade abaixo do limite do capital social. Como ponto de partida para a análise sobre a eficiência desse regime, indago os limites dentro dos quais essa proteção adicional por parte da Lei Societária faz sentido.

1. 1 Responsabilidade limitada e valor

Um dos pilares de sustentação das sociedades anônimas é a responsabilidade limitada dos sócios pelas obrigações sociais. Segundo Kraakman: "Business corporations have a fundamentally similar set of legal characteristics - and face a fundamentally similar set of legal problems - in all jurisdictions. Consider, in this regard, the basic legal characteristics of the business corporation. To anticipate our discussion below, there are five of these characteristics, most of which will be easily recognizable to anyone familiar with business affairs. They are: legal personality, limited liability, transferable shares, delegated management under a board structure, and investor ownership"2(grifei).

Como, em decorrência dessa característica básica das sociedades por ações, os credores têm acesso exclusivamente ao patrimônio social para a satisfação de seus créditos (e não aos dos sócios), surge um conflito potencial entre credores e acionistas. A Lei Societária regula esse conflito ao proteger os credores contra o eventual abuso, pelos acionistas, de sua responsabilidade limitada. Segundo José Luiz Bulhões Pedreira:

"Nas sociedades com fins lucrativos, a pessoa jurídica existe para auferir lucros a serem distribuídos aos sócios. A transferência de lucros é, portanto, da essência da sociedade, e sócios e credores podem ter interesses conflitantes: aos credores interessa o mínimo de distribuições (a fim de preservar ou aumentar a garantia financeira de seus créditos), enquanto que aos sócios pode interessar o máximo de distribuições.

"Se os sócios tivessem liberdade ilimitada de promover a transferência dos bens da sociedade para seus patrimônios, inclusive em prejuízo dos credores sociais, o regime de responsabilidade patrimonial deixaria de ser eficaz nas sociedades. Daí as disposições legais sobre a responsabilidade solidária dos sócios de alguns tipos de sociedade, e sobre o capital social - como mecanismo de garantia

Page 140

dos credores - nos tipos de sociedade em que a responsabilidade de todos os sócios é limitada."3À luz dos vultosos montantes de capital de terceiros tipicamente mobilizados e empregados pelas sociedades por ações e da importância do princípio da responsabilidade limitada, a existência de uma restrição ex ante ao direito dos sócios de acessarem os bens patrimoniais não é apenas benéfica aos credores, mas também à própria sociedade, porque lhe permite continuar acessando o mercado de crédito a um custo de capital atraente. Assim argumenta John Armour: "(...) such restrictions can deter ex post actions by shareholders (or, more accurately, directors acting on their behalf), which will be inefficient, in the sense of failing to maximize the expected value of the corporate assets, and which are taken with the view of transferring wealth, in an expected value sense, from creditors to shareholders [JENSEN and MECKLING, 1976]. This sort of action will result in social losses ex post if assets are withdrawn from valuable projects in order to fund such distributions. This would be priced into the interest rate by adjusting creditors; hence, it is in the shareholders’ interests to commit not to do it ex ante [BRADLEY and ROBERTS, 2004]. Moreover, because there are limits to the interest rates it is feasible to charge, the possibility of distributions being paid may deter creditors from lending at all ex ante. The result either way would be underinvestment in good projects [MYERS, 1977]. Moreover, either way, shareholders too would prefer such restrictions to be imposed ex ante".4Por essas razões, pode-se dizer, como princípio, que é tanto no melhor interesse da sociedade quanto no de seus diversos sta-

keholders que a Lei Societária proveja uma tutela adicional aos credores das sociedades por ações em relação àquela concedida por outras leis que regulam o relacionamento entre credores e devedores. Mas essa tutela, certamente, também envolve custos.

Para que seja eficiente, ao limitar o acesso dos sócios aos bens patrimoniais, a Lei Societária deve levar em conta os custos de transação correspondentes. Nesse sentido, Kraakman: "We hasten to add that the benefits of legal protections for creditors come at a cost. In theory, they are supposed to reduce costs, but in practice, they can also increase transaction costs when they are overly rigid and intrusive. Here, as elsewhere in corporate law, the point is not to eliminate opportunism entirely but to bring its costs into rough equilibrium with the costs of controlling it".5Daí que se indaga: onde está o equilíbrio?

Do ponto de vista da sociedade gera-se valor, na medida em que ela invista seus ativos a taxas de retorno superiores ao seu custo de captação. Segundo Tim Kossler:

"What are the four cornerstone of finance and how do they guide the creation of lasting corporate value?

"The first and guiding cornerstone is that companies create value by investing capital from investors to generate future cash flows at rates of return exceeding the cost of that capital (that is, the rate investors require to be paid for the use of their capital). The faster companies can grow their revenues and deploy more capital at attractive rates of return, the more value they create. In short, the combination of growth and return on invested capital (ROIC) drives value and value creation."6

Page 141

Dito de outra forma: sob a perspectiva financeira, se a sociedade tiver acesso a projetos que gerem taxas de retorno superiores ao seu custo de captação, a sociedade deve aplicar seus recursos em tais projetos. Caso contrário ela deve retornar os recursos aos sócios, porque investi-los irá diluir o retorno total da sociedade ou, no limite, destruir valor, sempre observado um ponto ótimo em que tal distribuição preserve seu custo de capital. Ainda segundo Kossler: "However, even if cash flow isn’t increased with a buyback, some have rightly argued that repurchasing shares can reduce the likelihood that management will invest the cash at low returns. If this is true, and it is...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT