Famílias simultâneas: a tutela jurídica dos amantes no cenário brasileiro

AutorCarlos José Cordeiro/Josiane Araújo Gomes
Páginas83-117

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Introdução

As sociedades democráticas contemporâneas estão confrontadas a refletir sobre os modelos clássicos de conjugalidade e de família. A família, inicialmente forma específica de agregação humana asseguradora da sobrevivência, modificou-se ao longo dos ciclos da vida, dos contextos culturais e dos conflitos inter-pessoais e ainda tem passado por transformações que correspondem às mudanças sofridas pela sociedade, representando, assim, profundo núcleo de interesses e controvérsias para o jurista.

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O Direito de Família, pela dinâmica incessante de mudanças nas relações afetivas, deveria ser merecedor de melhor tratamento jurídico e de maior facilidade de atualização. Na visão de um Direito das Famílias renovado, as diversas configurações de família não significam uma ameaça à comunidade e, muito menos, à ordem social.

Diante da necessidade de soluções para os descompassos e conflitos surgidos, especialmente na seara das relações familiares, a ordem normativa tradicional foi cedendo espaço para a absorção das renovações com o fim de readaptar sua aplicação aos fatos contemporâneos e aos novos fenômenos sociais.

Foi dentro desse contexto de recepção das mudanças sociais ocorridas que se promulgou a Constituição Federal de 1988, norma jurídica que, à época em que passou a viger, foi considerada absolutamente avançada com relação a vários temas.

Especificamente no contexto das normas jurídicas relativas à família, inovou ao não limitar tão somente à figura do casamento o status de “entidade familiar”, reconhecendo também a união estável e a família monoparental, bem como alçando à categoria de constitucionais vários princípios de salutar importância, merecendo especial destaque os princípios da dignidade da pessoa humana e da afetividade.

Ocorre que as evoluções sociais não estacionam no tempo, fato, porém, que acontece com o ordenamento jurídico, que não é dotado de dinamismo suficiente para acompanhar as mudanças quase diárias das concepções sociais acerca dos mais variados institutos.

Dessa forma, o avanço constitucional representado pelo reconhecimento de novas formas de entidades familiares rapidamente tornou-se obsoleta, pois a realidade cotidiana nos mostra que o conceito de família precisa ser reinterpretado, no sentido de abarcar entidades familiares paralelas, não reconhecidas, pelo menos de modo expresso, pela Constituição Federal de 1988.

1 A família em perspectiva civil-constitucional

Nos últimos tempos, um dos segmentos do universo jurídico em que podem ser verificadas intensas transformações é o Direito das Famílias, fato que despertou o interesse pela compreensão contemporânea da família no direito brasileiro.

A família, inicialmente forma específica de agregação humana asseguradora da sobrevivência, modificou-se ao longo dos ciclos da vida, dos contextos cul-

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turais e dos conflitos interpessoais e ainda tem passado por transformações que correspondem às mudanças sofridas pela sociedade. Destaca-se como entidade mutável, pois vem se reestruturando nos últimos tempos, fato que impossibilita identificá-la como um modelo único ou ideal.

No sistema clássico originário da Codificação Civil de 1916, o modelo familiar desenhado atendia a uma perspectiva institucional da família, na qual avultava o caráter patriarcal e hierarquizado, com a proteção exclusiva das entidades familiares centradas unicamente no matrimônio. Diante da necessidade de adaptação de soluções para os descompassos e conflitos surgidos, especialmente na seara das relações familiares, o Direito Civil tradicional foi cedendo espaço para a absorção das renovações com o fim de readaptar sua aplicação aos fatos contemporâneos e aos novos fenômenos sociais.

Com o advento da Constituição Federal Brasileira de 1988, impuseram-se novos paradigmas, ao se deixar de considerar o casamento civil ou religioso com efeitos civis como a única célula mínima e exclusiva na constituição da família, abrindo as portas legais para a contemplação da entidade formada pela união estável entre um homem e uma mulher, como qualquer dos pais com os filhos. Isto é, consagraram-se novas realidades familiares que se somaram às tradicionais.

A promulgação da Constituição Federal de 1988 implicou, ainda, em verdadeira renovação do Direito Civil brasileiro, especialmente do Direito das Famílias. O reconhecimento da incidência dos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade, dos valores de proteção ao ser humano, merecedor de respeito e consideração, bem como da isonomia entre as diversas formas escolhidas para a composição de famílias, reflete não apenas uma tendência metodológica, mas a preocupação com a construção de uma ordem jurídica mais sensível aos problemas e desafios da sociedade contemporânea.

Também em decorrência da entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, as normas jurídicas que disciplinavam as relações de direito privado passaram a ser funcionalizadas em prol da concretização de finalidades que promovam a tutela dos direitos e interesses da pessoa humana. Diante desse quadro, aflora a indiscutível importância da Carta Magna como marco no desdobramento do Direito das Famílias no Brasil, pois estabeleceu as diretrizes no tratamento da família como um todo (art. 226, caput) e na tutela de cada integrante individual-mente (arts. 226, § 5º, 227 e 230).

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Ao lado de importantes princípios constitucionais, tais como o da dignidade, da igualdade e da liberdade, a Constituição Federal de 1988 inovou ao trazer, em suas disposições legais, o aclamado princípio da afetividade. Sobre o mencionado princípio, os dizeres de Paulo Lôbo:

Demarcando seu conceito, é o princípio que fundamenta o direito de família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia sobre as considerações de caráter patrimonial ou biológico. Recebeu grande impulso dos valores consagrados na Constituição de 1988 e resultou da evolução da família brasileira, nas últimas décadas do século XX, refletindo-se na doutrina jurídica e na jurisprudência dos tribunais. O princípio da afetividade especializa, no âmbito familiar, os princípios constitucionais fundamentais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da solidariedade (art. 3º, I), e entrelaça-se com os princípios da convivência familiar e da igualdade entre os cônjuges, companheiros e filhos, que ressaltam a natureza cultural e não exclusivamente biológica da família.2A nova ordem constitucional inaugurada em 1988 implicou em profundas alterações na visão do ordenamento jurídico como um todo. Especialmente no âmbito do Direito Civil, a promulgação da nova Constituição propiciou uma releitura dos arcaicos institutos existentes neste âmbito. Inaugurou-se, portanto, a perspectiva do Direito Civil-Constitucional, que importou em profundas mudanças nos paradigmas até então adotadas, destacando-se o fato de o Código Civil deixar de ser a “normativa exclusiva do Direito Privado”3, perdendo as suas pretensões tradicionais de completude e generalidade na disciplina de todas as espécies de relações jurídicas privadas.

Enquanto ramo do Direito Civil, especificamente o Direito das Famílias sofreu profundas alterações com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a consequente releitura que esta causou na ordem civil. Enquanto inovação trazida pela perspectiva civil-constitucional, merece destaque as intensas e sucessivas modificações ocorridas no âmbito dos grupos familiares, que revelaram um processo de valorização do afeto nessas relações.

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A partir do reconhecimento de que o ente familiar não é mais uma única definição, mas uma realidade sociológica plural, assentada em relações de afeto, de solidariedade e de cooperação, a perspectiva civil-constitucional proclama a concepção eudemonista da família, segundo a qual cada indivíduo busca o seu desenvolvimento pessoal, utilizando a instituição familiar como meio para alcançar a felicidade.

Dessa forma, uma visão contemporânea da família, pela perspectiva civil--constitucional, leva à constatação de que a família transformou-se em núcleo de realização afetiva do ser humano, fato que conduziu, necessariamente, à construção de um novo modelo jurídico, extinguindo-se a noção de entidade familiar comprometida e finalizada somente à função econômico-procriacional. Nos dias atuais, os integrantes do grupo familiar são mais importantes que a preservação da entidade em si mesma. A relação entre os sujeitos do grupo, o qual pode apresentar uma pluralidade de fontes, estabelece-se democraticamente, numa verdadeira comunhão de afeto e de vida.

Fato, porém, é que a Constituição Federal de 1988, apesar de implementar significativas mudanças para o ordenamento jurídico civil, especialmente familiar, limitou o entendimento de família, tratando como entidades familiares merecedoras de sua atenção tão somente a família fundada no matrimônio, decorrente de união estável entre homem e mulher e a monoparental.

Ocorre que a limitação legal imposta pela Carta Magna confronta-se com todos os ideais e princípios por ela trazidos, pelo que é verdadeiramente impreciso afirmar que o conceito de entidade familiar se limita aos modelos pré-estabelecidos.

É necessário, portanto, realizar uma sucinta exposição acerca dos princípios constitucionais da afetividade e do pluralismo familiar, os quais permitem realizar uma interpretação extensiva das estruturas familiares mencionadas na Constituição Federal de 1988 e, por consequência, atribuir status de entidade familiar às uniões não legisladas, notadamente nos casos das famílias simultâneas.

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