A produção familiar e os desafios do mercado

Autor1.Walquíria Krüger Corrêa - 2.Lúcia H. de O. Gerardi
Cargo1.Doutora em Geografia. Professora do Departamento de Geociências da UFSC. - 2.Doutora em Geografia. Professora do Departamento de Planejamento Regional – IGCE – UNESP, Campus de Rio Claro.
Páginas110-131

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Introdução

As* transformações por que vem passando a agricultura familiar brasileira fazem parte de um conjunto de mudanças ocorridas no setor agropecuário, após meados da década de 1960, quando o Estado assumiu o planejamento e a execução de uma nova ordem territorial no espaço agrário. A prática de ordenamento do espaço agrário, respaldada por mecanismos normativos, financeiro-fiscal, produtivo e previdenciário, fundamentou-se na modernização tecnológica do setor agropecuário que se tornou, certamente, o fato histórico de maior expressão espacial e também de maior impacto sócio-econômico, ambiental e político, ocorrido no país.

O modelo de modernização agrícola, assentado nos princípios da Revolução Verde - insumos químicos e mecânicos -, viabilizado pelas políticas públicas, com destaque para o Sistema Nacional de CréditoPage 111Rural, assumiu uma dimensão territorial, provocando significativas mudanças estruturais na agricultura nacional. Tal modelo foi apropriadamente chamado de modernização conservadora, em face dos objetivos a que se propunha, incorporando como instrumento de ação somente inovações técnicas. O resultado culminou, de um lado, com a integração do setor agropecuário à dinâmica do capital urbano industrial e, de outro, no aprofundamento das relações de troca com outros setores e agentes econômicos que operam no mercado.

Em áreas onde se desenvolve a agricultura familiar; o produtor passou a explorar atividades especializadas (alimentos e matérias primas), adotou pacotes tecnológicos, integrou-se a cadeias produtivas, subordinando-se ao setor urbano industrial. A mercantilização da produção, decorrente da articulação com os sistemas de comercialização e financiamento, provocou profundas transformações na lógica interna de reprodução familiar.

Se isto já não fosse suficiente, no início da década de 90, novos fatos incidiram no espaço rural, afetando negativamente a agricultura familiar. Neste sentido, destaca-se a reorganização da economia mundial, expressa na onda neoliberal, associada à crise fiscal do Estado, enquanto agente viabilizador das políticas públicas para a agricultura.

No processo, conformou-se um ambiente de reestruturação tecnológica e de competição entre as empresas privadas, tanto no âmbito nacional como no internacional, com reflexos em todos os elos das diferentes cadeias produtivas, alcançando a agricultura familiar. Os juros altos, a elevada carga tributária, a inexistência de uma política agrícola de reconversão 3 , a baixa competitividade de seus produtos no mercado, passou a comprometer a reprodução daquele segmento, historicamente marginalizado das políticas públicas.

Neste cenário o produtor familiar passou a enfrentar desafios e a problemática que se coloca abarca questões que giram em torno da permanência ou exclusão do segmento familiar no mercado e no meio rural. Destas reflexões surgiram os seguintes questionamentos: qual é lógica de funcionamento da unidade de produção familiar? Como ela se organiza internamente e quais os efeitos no espaço? Que estratégias estão viabilizando a permanência do produtor no mercado e no meio rural?

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Quais são as dificuldades enfrentadas? Para responder a essas perguntas, este trabalho se propõe a analisar a organização sócio-espacial da unidade familiar produtora de maçã e sua relação com o mercado .

No Estado de Santa Catarina predominam pequenas propriedades, exploradas com mão de obra familiar. Apesar das condições econômicas desfavoráveis, a produção agrícola catarinense é diversificada e a tendência à especialização torna-se cada vez mais nítida, tanto nos espaços regionais quanto nos espaços locais. Entre as várias especializações, destaca-se a fruticultura de clima temperado, particularmente a maçã, que encontrou no planalto catarinense as condições ambientais e de trabalho propícias para se desenvolver.

Segundo Hentschke (1994), em Santa Catarina as unidades produtoras de maçã são exploradas por pequenos e médios produtores bem como por grandes empresas, com alto grau de verticalização. Isto resulta em diferenciação no tamanho de áreas plantadas e nas formas de organizar a produção e o espaço.

Os pequenos pomares se desenvolvem principalmente no planalto sul, onde se localiza o município de Urubici. Nessa área predominam as explorações familiares, que se constituem no sustentáculo da economia local. À semelhança do que ocorreu em outras regiões do país, a expansão do mercado urbano industrial nacional se refletiu no espaço agrário urubiciense, onde se desenvolveram várias atividades especializadasfumo, olericultura, leite e maçã -, destinadas ao abastecimento do mercado. Tal processo provocou transformações relevantes na organização da produção familiar.

Muito embora as características da agricultura familiar não possam ser generalizadas, para responder os questionamentos e alcançar o objetivo proposto, elegeu-se como espaço o município de Urubici, tendo como alvo os produtores familiares de maçã, que estão integrados de formas diferenciadas ao mercado. Como em outras áreas do país, este segmento vem contribuído decisivamente para o desenvolvimento econômico não só local, mas também regional e nacional.

Orientação teórico - metodológica

A agricultura familiar, enquanto locus de produção, tem uma importância muito grande no abastecimento alimentar do mercado nacional. Analisando a produção familiar contemporânea, constata-se aPage 113existência de diferentes tipos de agricultores, os quais apresentam estratégias específicas de sobrevivência e de produção, resultando em múltiplas racionalidades econômicas.

Não constitui objetivo deste trabalho entrar no debate teóricometodológico que cerca o tema, todavia torna-se necessário explicitar critérios que possibilitem identificar quem é o agricultor familiar. Neste sentido, os pressupostos teóricos de Chayanov (1974) e Lamarche (1993, 1998) fornecem subsídios que auxiliam na compreensão do objeto de estudo.

Inspirado em Chayanov (1974), Lamarche (1993) dá uma contribuição relevante: mostra lógicas de funcionamento das unidades de produção familiar usando como referência dois modelos teóricos: original (história) e ideal (futuro). Mas entre esses dois extremos, encontra-se uma diversidade de situações intermediárias, ou seja, o produtor pode passar por diferentes estágios, ascendendo naturalmente no contexto evolutivo de cada organização sócio-econômica e política em particular.

O agricultor familiar contemporâneo apresenta características diferentes do camponês analisado por Chayanov (1974). Ele está integrado sob formas diversas ao mercado e, por isso, sofre os efeitos do processo de reprodução do capital e da abertura do mundo rural ao modo de vida moderno.

Muito embora a produção permaneça familiar, as transformações tecnológicas associadas às mudanças de comportamento nas sociedades modernas, refletem-se na composição interna das famílias que, atualmente, são mais reduzidas e, no que diz respeito ao trabalho no estabelecimento, não há necessidade de envolver todos os membros na produção. Além disso, o consumo também sofre redefinição, ou seja, o agricultor participa da sociedade moderna e, por isso, aspira à conquista de todos os bens materiais e culturais disponíveis.

Em obra recente, Lamarche (1998) apresenta quatro modelos teóricos de funcionamento dos estabelecimentos: empresa, empresa familiar, agricultura familiar e de subsistência e agricultura familiar moderna, os quais foram definidos a partir das lógicas familiares e do grau de dependência do mercado.

É importante salientar que os modelos referidos anteriormente são virtuais e indicam tendências, pois modelo absoluto não existe. Mesmo assim essa contribuição do autor é mais flexível que a anterior e orientou a identificação e a abordagem empírica da produção familiar ligada aoPage 114mercado, via agentes de comercialização. Para dar conta dessa realidade, foram considerados outros critérios que serão explicitadas a seguir:

1 - a unidade familiar é espaço de produção e de consumo; abriga um conjunto de práticas e de relações sociais específicas, assemelhando-se a uma empresa que possui dinâmica própria de funcionamento, distinta do modelo capitalista;

2 - a família possui o controle dos meios de produção - terra, instrumentos de trabalho e mão-de-obra - sendo ela a principal responsável pelo trabalho na unidade de produção;

3 - a exploração da terra é efetuada pelo proprietário com mão-deobra familiar, não impedindo, porém que, em determinados períodos, o trabalho alugado auxilie nas tarefas da unidade produtiva, numa relação sem traços capitalistas;

4 - o grupo familiar mantém vínculos com o patrimônio fundiário, os sistemas de produção mercantil são diversificados e intensivos, apresentando grande dependência técnica, financeira e comercial;

5 - a família define estratégias de sobrevivência e elas se realizam tanto na própria unidade produtiva como fora dela, em outros estabelecimentos ou em atividades não-agrícolas;

6 - é uma unidade econômica dotada de organização interna e racionalidade específica, o grupo familiar não objetiva salário e nem lucro explícito. A renda conjunta destina-se à reprodução social, expressa na satisfação das necessidades da família, as quais podem ser tanto alimentares e de vestuário, como também outras, impostas socialmente pelo mercado.

Admite-se que na área pesquisada as unidades produtivas apresentam caracteres diferenciados em vários aspectos: naturais, sociais, culturais, econômicos, grau de inserção no mercado, dentre outros. As lógicas de funcionamento são distintas, mas...

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