Família, democracia e responsabilidade

AutorFirly Nascimento Filho
CargoMestre em Direito. Professor
Páginas88-103

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1. Introdução

O fenômeno* do constitucionalismo nasce no mesmo momento histó- rico do liberalismo, fazendo valer o lema liberdade mais do que igualdade e fraternidade.

A Revolução Francesa e a Revolução Americana tiveram, historicamente, pontos de contato e de apoio que propiciaram, certamente, a influência que ambos os países realizaram durante o século XX e continuam no século XXI.

Concomitantemente à revolução no padrão político, o liberalismo econômico puro irá se estabelecer após as bases obtidas pela sociedade burguesa. Os conflitos entre as classes irão redundar em embates entre países sendo um dos marcos a denominada Primeira Guerra Mundial, em cujo período são verificadas profundas transformações no contexto internacio-nal podendo haver destaque para a Constituição Mexicana de 1917, fruto de lutas intensas, cuja previsão sobre a reforma agrária tornou-se um marco indelével.

Além disso, avançou no reconhecimento de inúmeros direitos sociais, incluindo jornada de trabalho e direito à greve.

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Na Europa, após ser derrotada militarmente, a Alemanha viu ser proclamada a República de Weimar e a edição de Constituição também considerada extremamente avançada para a época por estruturar a ordem econômica e social.

O mesmo período histórico também marca o início dos países socialistas com a instauração da Revolução Russa e da formação de novel estatuto fundamental editado em 1923 que se tornou modelo para os demais países que viriam, mais tarde, a integrar o rol daqueles com regime socialista, de influência marxista-leninista.

No Brasil, os influxos modernos vieram a desaguar na Constituição Fe-deral de 1934, considerada a mais bem estruturada de nossas constituições que, no entanto, teve vida curta, pois foi seguida da Constituição de viés autoritário, editada em 1937, esta última conhecida como “Polaca”.

Nossa atual Constituição, editada em 1988 e remendada inúmeras vezes (cinqüenta e duas emendas, até hoje) proclama a existência de va-riegados princípios, sendo proficiente na proteção de direitos tidos como fundamentais.

A moderna doutrina concentra os seus esforços hermenêuticos no sen-tido de viabilizar os inúmeros princípios que foram albergados no texto constitucional em vigor. Embora, evidentemente, não esgotem esse tema tão carente de estudos, o exame da questão sob o prisma constitucional é, ao nosso ver, ponto de partida necessário para a sua análise profícua.

A nossa Constituição de conteúdo analítico, organizando os Poderes do Estado e estipulando inúmeros direitos fundamentais, de índole individual, coletiva e social, regulamentam de maneira extensa, diversos institutos cuja atuação é essencial para melhor compreensão do desenvolvimento da estrutura do Estado.

A estrutura constitucional atual no que tange aos aspectos relacionados à estrutura interna do Estado, em quase sua totalidade, está protegida das reformas liberais empreendidas no solo pátrio vez que consideradas cláusulas pétreas.

A interligação entre a Constituição, a Família e a Responsabilidade Civil é fruto de uma moderna concepção de Direito que procura retirar das normas constitucionais todo o sentido para a sua aplicação. Não se concebe mais a Família e a Responsabilidade fora do norte imposto pela Lei Maior.

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Essa mudança de paradigma acompanha a mudança da Sociedade e pela existência cada vez maior de um Estado intervencionista1.

Inegavelmente cabe ao Estado definir as regras quanto ao casamento, à filiação, ao divórcio, aos alimentos etc. Tal tarefa, tradicionalmente, foi conferida ao legislador ordinário. A mudança de paradigma transfere para a Constituição as balizas para a instituição familiar. Embora as normas continuem no âmbito da legislação ordinária elas devem sofrer o influxo da interpretação constitucional, notadamente aquelas lastreadas nos princípios dentre os quais avulta o da dignidade da pessoa humana.

Além desse princípio maior aplicam-se a solidariedade, a igualdade e a liberdade.

Também nesse tema, destacam-se as lições sempre precisas da profes-sora Maria Celina Bodin de Moraes que, lastreada no pensamento de Kant cunhou um moderno conceito de dano moral como lesão à igualdade, liberdade, solidariedade ou integridade psicofísica da pessoa2.

2. Democracia

O estudo da democracia remonta, consoante entendimento consensual, à Grécia antiga sendo o padrão das cidades-estado, como Atenas, Esparta, Tebas, etc 3. O seu desenrolar no tempo deságua no sistema moderno, com a utilização do voto, como instrumento de participação popular, embora não único, mas que serve de esteio para o que se denomina democracia representativa, sendo o processo de escolha direcionado ao exercício de mandato popular.

Desde priscas eras, no entanto, as oligarquias costuram instrumentos de dominação das classes populares sob variegados pretextos, sendo notórios os textos de Platão, sempre invocados por aqueles que pretendem manipular e estabelecer limites para as classes populares impedindo o seu efetivo acesso ao poder político.

Na tradição liberal capitaneada por Benjamin Constant o voto deveria ser da classe de proprietários/ricos.

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Em obra clássica, Aléxis de Tocqueville4 também segue tal linha de atuação. Na tradição liberal ele é contra o Estado interferindo em direitos individuais e combatendo os direitos sociais.

O autor referido analisando a experiência norte-americana elogia o sis-tema eleitoral em níveis (a Câmara eleita diretamente e o Senado eleito pelos membros da Câmara).

Tocqueville era contra a eleição direta, mas não admitia a solução censitária de Constant.

Alguns aspectos da democracia americana devem ser ressaltados: a) os delegados foram designados pelos estados; b) os requisitos de participação impostos pelos estados eram ser proprietários ou pagadores de tributos; c) tal sistema caracterizava um critério censitário; d) em alguns estados o critério era a religião protestante5.

Deve ser observado que nessa quadra histórica, o voto, além dos pressupostos já referidos, somente poderia ser exercido por membro do sexo masculino e branco.

Nesse processo o papel da Suprema Corte americana é, claramente, o de legitimar os padrões conservadores implantados.

O desenrolar do processo democrático, contudo, tem necessidade de integrar novos atores, sendo conflituoso, mas causando a extensão do voto aos negros, aos brancos pobres e aos imigrantes, no ultimo caso após admitir-se sua naturalização.

2.1. A Constituição americana

Diz Hans Peter Schneider, quanto à Constituição alemã, que a mesma corresponde à estruturação de uma ordem democrática liberal, reconhecendo a dignidade humana como critério vinculante a todo poder estatal, garantindo as liberdades individuais, limitando o controle institucional do poder político e conferindo uma ampla proteção judicial6.

Podemos afirmar o mesmo quanto à Constituição americana. Robert Dahl, consagrado cientista político, enuncia sua preocupação quanto à leitura do texto constitucional americano em sua obra doutrinária “How Democratic is American Constitution”.

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É certo, que o cenário constitucional, traçado nos Estados Unidos identifica diversas formas de interpretar a Constituição. Nesse sentido podemos indicar a vertente originalista que pretende retirar do texto aprovado pelos pais fundadores o único sentido do texto constitucional.

A perspectiva traçada por Dahl parte da Convenção realizada em 1787. Defende o citado autor que devemos identificar os pais fundadores com aqueles que, apesar de não participar da elaboração direta do texto, foram pessoas influentes, utilizando os termos father and framers7.

A tese por ele defendida aponta um projeto de república aristocrática e não de democracia. A democracia surgiu como resultado do processo histórico.

Observando os fatos sob uma perspectiva histórica é possível perceber que, sendo proprietários de terras, os pais fundadores não poderiam pregar uma universalização do voto e da participação popular, sob pena de contrariar os seus próprios interesses.

Nessa linha, o projeto de representação partidária partindo de critérios censitários e criando um Senado eleito indiretamente demonstram que a interpretação de Dahl tem fundamento, no mínimo razoável.

Outras indicações surgem e são relacionadas no texto em foco: a) inexistência de proibição expressa quanto à escravidão; b) ausência de garantia do sufrágio universal; c) sistema de escolha do Presidente da República; d) eleição indireta dos Senadores; e) representação proporcional do Senado; f) ausência de limitação dos poderes do Judiciário para declarar inconstitucionais as leis; g) os poderes do Congresso foram limitados em assuntos econômicos fundamentais8.

A Constituição passou a sofrer modificações através de emendas cons-titucionais e de interpretações realizadas pela Suprema Corte.

A preocupação expressa por Madison quanto ao controle das facções acaba desaguando na composição bipartidária do cenário americano. Originariamente, o partido federalista agrupava todos os segmentos e após surgiu o partido democrata-republicano.

O partido Democrata nasceu de uma cisão do partido Federalista. A fundação do atual partido Democrata americano remonta a 1792, nascido como partido Democrata-Republicano e ganhador da eleição de 1800, comPage 93Thomas Jefferson, que governou, por dois mandatos, sendo sucedido por James Madison e, após por James Monroe.

Posteriormente o antigo partido federalista transformou-se em Republicano.

O modelo de Constituição americana é entendido como o mais adequado aos outros paises, sendo um pensamento consensual no seio dos Estados Unidos. Tal perspectiva é contestada por Dahl indicando que somente vinte e dois paises mantiveram um regime estável democrático e constitucional durante os últimos cinqüenta anos9.

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