Familia, conservadorismo e politicas sociais no Brasil: questoes para reflexao/Family, conservatism and social policies in Brazil: questions for reflection.

AutorLima Souza, Ilka de

Introducao

Ha muitas nuances e inumeras possibilidades de perspectivas ao se discutir familia e politicas sociais no Brasil. Diante disso, neste artigo pretendemos apresentar algumas consideracoes sobre o familismo presente nas politicas sociais brasileiras na contemporaneidade. Para isso, optamos por, inicialmente, considerarmos a formacao socio-historica brasileira, que imprime peculiaridades a nossa cultura e, consequentemente, traz fortes rebatimentos na familia e na forma como se estruturam o Estado e as politicas sociais no pais. Discutimos e apresentamos alguns tracos gerais de nossa formacao socio-historica, autoritaria, conservadora, paternalista e patriarcal.

Desse modo, no campo das politicas sociais, as marcas dessa formacao se estruturam por meio da proposta familista, que estabelece a familia como principal sujeito de suas acoes. Defendemos ao longo do texto que, ainda que respaldada em um discurso de assegurar direitos as familias e seus membros, a proposta pautada no familismo tende a sobrecarrega-las, sobretudo as mulheres. Isso acontece uma vez que sao estas, particularmente as da classe trabalhadora mais empobrecida, que assumem as tarefas domesticas diarias e os cuidados com criancas, idosos, doentes etc.

Demarcamos, portanto, que na relacao entre Estado e familia no Brasil a chamada parceria entre essas duas esferas da vida social se materializa em um cenario cuja intensificacao das desigualdades e da precarizacao de direitos sociais, bem como das condicoes de vida, afeta sobremaneira as familias da classe trabalhadora. Essas nao contam com politicas sociais publicas que efetivamente respondam as suas reais necessidadades. Observamos, na verdade, um Estado sintonizado com as diretrizes do capital, que atua mais no sentido de fortalecer a "solidariedade informal", os apoios provenientes das redes primarias ou informais, e nao no impulsionamento de politicas alicercadas no conhecimento, no respeito e na analise critica e ampliada da realidade que perpassa o cotidiano daquelas familias.

Nesse sentido, concluimos defendendo a pertinencia de se (re)discutir o familismo e a organizacao das politicas sociais publicas, pensando possibilidades que apontem para sua superacao, mas, ao mesmo tempo, que defendam a necessidade de superar solucoes pontuais que efetivamente nao resolvem. Alem disso, entendemos, no debate que envolve a referida tematica, a imprescindibilidade de apreendermos e analisarmos a instituicao social familia, evidenciando-a em sua diversidade e analisando as contradicoes inerentes ao universo familiar.

A familia na formacao socio-historica brasileira

O Brasil teve seu processo de colonizacao com base na religiao catolica e, consequentemente, seus valores foram alicercados no imaginario judaico-cristao ocidental. Neste sentido, tal imaginario, aliado a determinadas peculiaridades da formacao socioeconomica brasileira, fizeram surgir e tornar-se hegemonico o modelo familiar patriarcal, a partir do ciclo da cana-de-acucar no Nordeste.

O modelo de familia patriarcal dominante no Nordeste brasileiro (1) enfatizava a autoridade maxima do pai de familia sobre todos os outros membros familiares, num poder incontestavel (2). Tal poder se estendia a parentes e agregados, pois as familias eram, na verdade, extensos clas que serviam para legitimar e garantir o poder de seu chefe (3). Os casamentos, via de regra, visavam unir familias importantes e contavam com controle de sexualidade e regulacao da procriacao com vistas a questao da heranca e sucessao (4).

A estrutura economica de base agraria, latifundiaria e escravocrata do Brasil colonial--associada a outras condicoes, tais como descentralizacao administrativa local, excessiva concentracao fundiaria e acentuada dispersao populacional--determinou a instalacao de uma sociedade paternalista, na qual as relacoes de natureza pessoal se tornaram deveras importantes. (OSTERNE, 2001, p. 60). A dimensao gigantesca, a subserviencia cultural e economica aos paises centrais, enquanto pais periferico no capitalismo mundial, acompanharao a historia brasileira e estabelecerao algumas caracteristicas proprias em nossa cultura: autoritarismo, verticalismo, tutela e favor.

Ao dizer que a sociedade brasileira e autoritaria estou pensando em certos tracos gerais das relacoes sociais que se repetem em todas as esferas da vida social (da familia ao Estado, passando pelas relacoes de trabalho, pela escola, pela cultura). Vivemos numa sociedade verticalizada e hierarquizada (embora nao o percebamos) na qual as relacoes sociais sao sempre realizadas ou sob a forma de cumplicidade (quando os sujeitos sociais se reconhecem como iguais), ou sob a forma do mando e da obediencia entre um superior e um inferior (quando os sujeitos sao percebidos como diferentes, a diferenca nao sendo vista como assimetria, mas desigualdade). [...] A forma autoritaria da relacao e mascarada por aquilo mesmo que a realiza e a conserva: as relacoes de favor, tutela e clientela. (CHAUI, 1994, p. 27). Desse modo, as constantes "revolucoes pelo alto", os governos autoritarios, a apropriacao do dinheiro publico e o conhecido "jeitinho brasileiro", aliados ao ufanismo de ser um pais privilegiado do ponto de vista das belezas naturais (5), estabelece uma formacao com caracteristicas proprias, que rebatem tambem no ambito familiar, tornando-o muito mais autoritario, heterossexista e patriarcal. "A nossa formacao e acompanhada por caracteristicas historicas de nossa cultura, como o autoritarismo, o patrimonialismo, o clientelismo, o racismo, o patriarcalismo, a privatizacao do publico, que se combinam entre si" (CISNE; SANTOS, 2018, p. 99).

Assim, caracteristicas especificas da nossa sociedade farao do homem nao so o chefe da familia, mas tambem o patriarca, o coronel, o dono do poder economico e politico (OSTERNE, 2001). Destarte, apesar das conquistas do movimento feminista (6) ao longo da historia--como sufragio feminino, direito a educacao, insercao no mercado de trabalho, divorcio etc.--, permanece predominantemente o modelo no qual cabe ao homem a ultima palavra, mesmo em funcoes tradicionalmente destinadas a coordenacao das mulheres, mas que, apesar disso, nao lhes confere poder de mando e decisao (7). Ao mesmo tempo em que a sociedade estabelece a obediencia das mulheres aos homens, a elas tambem se imputam todas as funcoes de cuidado e nutricao no ambito familiar.

E do trabalho no seio da familia ao que se estende ao trabalho assalariado que, em grande medida, as mulheres vao assegurando de maneira gratuita e/ou mal remunerada a chamada reproducao social antroponomica, que se refere 'ao cuidado com a educacao das criancas, cuidado com os idosos e com as pessoas doentes, manutencao material das residencias, dos espacos de estudo, de trabalho e vida social'. (CISNE; SANTOS, 2018, p. 61). Em uma sociedade marcadamente verticalizada e autoritaria, com uma democracia ainda incipiente, a seducao por discursos autoritarios, conservadores e de extrema direita se mantem. Em tempos de crise (8), a burguesia (9) brasileira, acostumada a saidas pelo alto e a nao ter seu poder questionado, opta por respostas autoritarias. Por meio de um discurso ideologico e utilizando os meios de comunicacao, apresenta um salvador--bem ao gosto da formacao crista brasileira--que "resolvera" os problemas enfrentados pela burguesia, apresentando a solucao como necessaria e urgente para o pais; portanto, necessaria para todos. Nos termos de Marx e Engels (1991, p. 49, p. 74):

Toda classe que aspira a dominacao [...] deve conquistar primeiro o poder politico, para apresentar seu interesse como interesse geral, [...] a apresentar seus interesses como sendo o interesse comum de todos os membros da sociedade, isto e, para expressar isso mesmo em termos ideais: e obrigada a emprestar as suas ideias a forma de universalidade. Desse modo, e nesse ranco cultural burgues, patriarcal, racista, autoritario e conservador que se gesta a candidatura de Jair Messias Bolsonaro, eleito presidente da republica em 2018. Com ele, reacende-se a defesa da familia como instituicao responsavel...

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