As Famílias (ou Naipes)

AutorArion Sayão Romita
Ocupação do AutorAcademia Nacional do Direito do Trabalho
Páginas126-160

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9.1. Nomenclatura

Usual é o emprego do vocábulo gerações para designar as famílias (naipes ou grupos) de direitos fundamentais. Não se trata, porém, de gerações: estas se sucedem com o passar do tempo, umas tomam o lugar das outras. Não é o que ocorre, porém, com os direitos fundamentais. A revelação dos direitos de determinado naipe não faz desaparecer os anteriores. Os diferentes grupos de direitos fundamentais existem simultânea e concomitantemente, sendo impensável a supressão dos direitos de primeira e segunda "gerações" pelo fato de se revelar uma terceira "geração".

Paulo Bonavides, que falava em "gerações" de direitos fundamentais1, sugeriu a adoção do termo "dimensão". O emprego deste vocábulo é correto, com o significado que lhe atribui illis Santiago Guerra Filho, para quem "os direitos gestados (sic) em uma geração, quando aparecem em uma ordem jurídica que já traz direitos da geração sucessiva, assumem outra dimensão, pois os direitos de geração mais recente tornam-se um pressuposto para entendê-los de forma mais adequada - e, consequentemente, também para melhor realizá-los". Lembra o exemplo do direito individual de propriedade que, numa segunda geração, assume outra dimensão: função social da propriedade e, numa terceira, ostenta nova dimensão (função ambiental, por ser também um direito difuso)2. Aqui, sim, faz sentido falar-se em diversas "dimensões" do mesmo direito, pois elas não se "sucedem": antes, imprimem ao mesmo direito já existente diferente significado e função distinta, segundo a nova óptica pela qual são considerados. O direito de propriedade é um só, mas, de acordo com as novas dimensões que assume, passa de direito individual, inviolável e sagrado, a exercer uma função social e, após, uma função ambiental. O fato de nele poder ser identificada uma terceira dimensão não apaga as duas anteriores.

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Fora desse contexto, não se justifica a denominação "dimensões". Ela só adquire legitimidade quando alusiva a certo e determinado direito, mas revela-se imprópria para designar os grupos de direitos fundamentais. Nesta visão, o termo adequado é "família", que pode ser substituído, quando conveniente por sinonímia, pelas palavras "naipe" ou "grupo".

9.2. Visão diacrônica das famílias de direitos fundamentais

As famílias, ou naipes de direitos fundamentais, podem ser consideradas a partir de um ponto de vista diacrônico e de um ponto de vista sincrônico. Iniciaremos pela visão diacrônica.

Os direitos da primeira e da segunda família já eram conhecidos e suficientemente estudados quando se começou a falar dos direitos da terceira família, como se se tratasse de "novos direitos". Não se trata, porém, de direitos novos, que tenham surgido recentemente.

Os chamados direitos da terceira família (ou terceira geração, como preferem alguns autores) sempre existiram, pois o homem é um ser social por excelência. Eles pressupõem a existência grupal do homem, isto é, a vida do homem em sociedade. Os direitos da primeira família são os individuais, lastreados na igualdade formal perante a lei; consideram o sujeito abstratamente; preconizam atitude abstencionista do Estado em face do indivíduo e preservam a liberdade. Os direitos da segunda família são os direitos sociais, assegurados ao indivíduo inserido no grupo; o indivíduo é encarado em situação concreta; exigem do Estado não mais uma posição passiva, mas sim prestações positivas, no sentido da igualdade, já não meramente formal, porém material; são os chamados direitos econômicos e sociais, que requerem intervenção direta do Estado.

Os direitos da terceira família ultrapassam a individualidade do ser humano, interessam a toda uma coletividade. Não só os indivíduos têm direitos, os grupos também os têm. Neste tipo de direitos, não há titulares individualizados. Assistem eles a toda uma coletividade ou grupo de pessoas, por isso são ditos supra ou metaindividuais. Dizem respeito a anseios ou mesmo necessidades de grupos relativamente à qualidade de vida, como o direito à saúde, à qualidade dos alimentos e dos utensílios, à sadia relação com os fornecedores de produtos e serviços (direitos dos consumidores), à preservação do ambiente, à paz, ao desenvolvimento, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade.

A terceira categoria de direitos (ditos coletivos ou difusos) obteve reconhecimento tardio porque somente a sociedade contemporânea podia colocá-la em evidência. Não é que os direitos não existissem anteriormente. Existiam, porém sobre eles pairava o véu do desconhecimento, já que o

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Estado liberal só cuidava de tutelar o interesse individual. Só os direitos dos indivíduos eram considerados relevantes pelo Estado liberal. Só os direitos suscetíveis de afetação a um titular mereciam a proteção da lei. A tutela jurisdicional alcançava apenas os "direitos subjetivos", exigindo-se que o interesse alegado fosse direto e pessoal. Esta concepção individualista inviabilizava o reconhecimento dos direitos insuscetíveis de apropriação individual, como a preservação do meio ambiente. Se um interesse concerne a todos, a ninguém pertence: ninguém é proprietário do ar que respiro. Por esta óptica, interesses deste tipo não poderiam dispor de proteção judicial por atinentes a situações subjetivas indiferenciadas.

Mercê da primeira revolução industrial, abriu-se o caminho para a revelação dos direitos difusos, próprios da sociedade de massa, na qual se esvai a noção do sujeito de direito como indivíduo isolado. O indivíduo se inclui em um grupo ou uma categoria, de sorte que a proteção agora dispensada muda de natureza: o direito individual se transforma em coletivo. Os direitos difusos, caracterizados pela indeterminação dos sujeitos e pela indivisibili-dade do objeto, ultrapassam a órbita dos grupos particularizados, por não poderem ser captados em caráter de exclusividade.

9.3. Visão sincrônica das famílias de direitos fundamentais

Norberto Bobbio observa que, a partir do término da Segunda Guerra Mundial, o desenvolvimento da teoria e da prática dos direitos fundamentais ocorreu em duas direções: na direção da sua universalização e na sua multiplicação3.

Do primeiro processo não se cuidará aqui, porque já examinado quando do estudo das características dos direitos fundamentais (universalidade e internacionalização). Será examinado apenas o segundo processo (multiplicação).

Cogita-se basicamente da existência de três famílias de direitos fundamentais: 1ª - a das chamadas liberdades negativas; 2ª - a dos direitos econômicos e sociais; 3ª - a dos direitos coletivos e difusos. Estas famílias de direitos são bem conhecidas e acham-se perfeitamente identificadas e estudadas.

Três são os processos, relacionados por Norberto Bobbio, segundo os quais ocorreu a proliferação dos direitos: 1º - aumentou a quantidade de bens considerados merecedores de proteção: deu-se a passagem dos direitos de liberdade para os chamados direitos sociais; 2º - a titularidade de alguns direitos típicos foi estendida a sujeitos diversos do indivíduo:

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dos indivíduos considerados uti singuli (os primeiros sujeitos aos quais se atribuíram direitos naturais) essa titularidade passou para outras categorias de sujeitos, como a família, as minorias étnicas, toda a humanidade e, nos movimentos ecológicos, para o respeito à natureza; 3º - o homem deixa de ser considerado, genericamente, como um ser abstrato, e passa a ser visto na especificidade de sua maneira de existir em sociedade: o sujeito de direitos torna-se o homem concreto, situado, a reclamar atenção especialmente voltada para as diferenças específicas, como a mulher, a criança, os deficientes etc.4.

Esse processo de multiplicação dos direitos fundamentais não cessa. Novas famílias são acrescentadas, principalmente por força da revolução tecnológica e da globalização. Há - é certo - o risco de banalização dos direitos. Surge a impressão de que os direitos humanos perdem valor em virtude de sua inflação descontrolada. O abuso em invocar os direitos humanos na retórica da defesa de pretensões individuais ou coletivas favorece uma visão do direito como simples resultado de confronto de interesses5. As três primeiras famílias, hoje em dia, já não bastam para albergar a totalidade dos direitos individuais. Reconhece-se atualmente a existência de mais três famílias que, agregadas às três iniciais, podem ser designadas como a quarta, a quinta e a sexta. É certo que, a respeito destas últimas famílias, os estudos ainda se encontram em fase inicial. Faz-se necessária uma análise mais profunda, uma depuração dos conceitos, de modo que se consiga um consenso entre os autores. Há hesitações na doutrina. Registram-se discrepâncias de opiniões, como é natural quando se trata de novidades no campo doutrinário.

Seriam estas as novas famílias de direitos fundamentais: quarta - família dos direitos de manipulação genética, relacionados com a biotecnologia e a bioengenharia, que tratam de questões da vida e da morte, cópia de seres humanos etc., e que exigem uma discussão ética prévia; quinta - naipe dos direitos da realidade virtual, que nascem com o desenvolvimento da cibernética e da informática, a superar as fronteiras tradicionais e a possibilitar o surgimento de conflitos entre realidades sociais distintas; sexta -...

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