O falso erro médico, o judiciário e a injustiça

AutorJurandir Sebastião
Ocupação do AutorJuiz de Direito aposentado
Páginas37-61

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A falsa justiça e o desencanto profissional

Dra. Mariana, mulher de Dr. Fagundes, muito raramente participava das reuniões na "Cozinha Cultural". Normalmente comparecia apenas para cumprimentar os presentes. Fazia rápidos comentários informais, comia um pouco daquilo que mais lhe apetecesse, preparado pelo Jonas, pegava algumas frutas e se despedia de todos, pedindo a eles que "ficassem" à vontade. Retornava ao interior da casa principal e de lá não mais saía. Preferia permanecer na sala íntima da residência, confortável e interligada ao jardim de inverno, assistindo a programas de televisão ou filmes, ou lendo e ouvindo música. O comum era, enquanto via filme ou televisão, fazer, ao mesmo tempo, palavras cruzadas ou falar ao telefone com amigos ou com o filho distante, fruto de seu primeiro casamento, ou com os netos, ou com a nora, ou, ainda, com os dois enteados, filhos do primeiro casamento de Dr. Fagundes. Estava sempre ao telefone com um deles. Mas tinha a habilidade de fazer quase tudo concomitantemente: assistir a televisão, ouvir música, fazer palavras cruzadas e falar ao telefone. Não obstante essa rotina aparentemente plena, não mostrava muito entusiasmo por nada. Era como se nela existisse uma revolta embutida. Sempre fora pessoa presente e prestativa, mas, paradoxalmente, agora, vivia apática, reflexiva e voltada para si própria.

Era médica, com especialidade em oftalmologia. Mas não mais exercia a profissão com a mesma vibração e alegria, como fazia no início. Quando iniciou na clínica oftálmica, era dinâmica: queria atender e resolver os problemas de saúde de todos. Hoje, limitava-se a prescrever óculos, depois do automático exame óptico. Claro que, em cada paciente, após a anamnese e antes da prescrição dos óculos, fazia o exame de fundo de olho e registrava o resultado na ficha individual. O automatismo nessa conduta profissional era a nota sonante. Conversava com o consulente apenas o necessário. E,

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quando percebia, pelo exame do fundo de olho, que o paciente necessitava de uma atenção profissional maior ou exames mais aprofundados, ela não titubeava: encaminhava-o a outros colegas, nos quais confiava pela competência demonstrada ao longo da vivência clínica/profissional.

A perda do entusiasmo e da alegria e a mudança de comportamento vieram após sua condenação judicial, obrigando-a a indenizar a família de uma criança que perdera a visão de um dos olhos, numa cirurgia que ela, Dra. Mariana, praticara.

O falso erro médico e o formalismo judicial

Em passado não muito distante, a menina Venilda dos Santos, com nove anos de idade, bonita, alegre, risonha e inteligente, compareceu, acompanhada de sua mãe, ao consultório de Dra. Mariana, para exame dos olhos, da visão e indicação de óculos. A queixa era de que Venilda estava com a visão embaçada em um dos olhos. Examinada, em consulta oftalmológica de rotina, por meio do microscópio (Lâmpada de Fenda), constatou-se catarata congênita unilateral. O tratamento proposto foi o de cirurgia da catarata por facoemulsificação e implante de lente intraocular. Nessa consulta, à mãe da menor foram dadas todas as explicações sobre os riscos inerentes à cirurgia, assim como a advertência de que o retardar, em demasia, o tratamento poderia agravar a doença e torná-la irreversível. Ciente dos riscos, a mãe da menor concordou com a cirurgia proposta. Para sua realização foram feitos os exames pré-operatórios das condições oculares (biometria ultrassônica, microscopia especular, mapeamento de retina, etc.), assim como os exames físicos gerais (exame clínico de avaliação com pediatra e exames laboratoriais: tipo sanguíneo, tempo de coagulação, etc.).

A cirurgia de facoemulsificação (utilização de aparelho ultrassônico que desintegra e aspira a catarata) transcorrera normalmente. Mas, no curso do pós-operatório, infelizmente, ocorreu a complicação denominada endoftal-mite, ou seja, inflamação bacteriana interna do olho. Apesar do tratamento com antibioticoterapia, o processo infeccioso evoluiu e o olho operado perdeu a função e se atrofiou (phitisis bulbi), com perda total da visão.

Depois de longo tratamento, a infecção cedeu e deu-se início a ci-catrização, mas sem a recuperação da visão no olho operado. A menina Venilda teve alta e, em sua casa, deu continuidade aos procedimentos de

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higienização de ambos os olhos, assim como o de tomar, em continuidade, os medicamentos prescritos.

Com o passar do tempo, Venilda, menina vaidosa como era, passou a ficar revoltada consigo própria, diante de sua nova aparência sem um dos olhos, não obstante a prótese de vidro, provisória. Por falta de amparo psicológico familiar, ou por causas outras desconhecidas, o certo é que, na escola, recebendo o apelido de "caolhinha", deixou de acompanhar o rendimento de suas colegas de classe, tornando-se uma menina isolada, melancólica, rebelde e, aos poucos, agressiva. Findou por se aproximar de outras meninas de comportamentos que deixavam a desejar. Daí para o início de uso de drogas, aos 11 anos, foi um pulo. E, do uso ao vício, também. Todos esses fatos foram explorados no processo indenizatório, para "justificar" e majorar o valor da indenização pedida, atribuindo à Dra. Mariana a culpa total pela cirurgia realizada e malsucedida, e assim como as sequelas refle-tidas na vida escolar e familiar de Venilda.

As acusações e a condenação judicial

O fato ocorrido foi objeto de três reclamações distintas por parte da família da menor Venilda dos Santos: a primeira, de indenização, no juízo civil; a segunda, na área penal, contra o arquivamento do inquérito policial; e a terceira, no Conselho Regional de Medicina, para punição administrativa.

Para atuar na defesa judicial de Dra. Mariana, Dr. Fagundes indicou o Dr. Neri Mateus, por ser advogado de sua confiança, competente, diligente e militante na área cível. Entretanto, na procuração juntada aos autos, além do nome de Dr. Neri, também constou o nome de Dr. Fagundes. Mas Dr. Fagundes tinha deixado bem claro ao Dr. Neri que essa inclusão era apenas formal, porque não atuaria em causa própria. Era apenas para deixar Dra. Mariana mais tranquila.

Na instrução processual judicial cível, o médico-perito, nomeado pelo juiz de direito, entendeu que o caso de Venilda comportava outros enfren-tamentos, sem ser por ato cirúrgico, e que, além disso, a eleição da técnica adotada pela ré, Dra. Mariana, não foi a melhor. Para "justificar" seu laudo, descreveu a técnica cirúrgica que, a seu ver, deveria ter sido adotada pela ré, se o caso tivesse sido o de necessária cirurgia. O médico assistente-téc-nico, indicado por Dr. Neri, foi incisivo em criticar esse laudo pericial, apon-

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tando literatura médica nacional e estrangeira favorável à terapia adotada, de cirurgia para tais casos, assim como a técnica cirúrgica procedida, com maior vantagem do que aquela preconizada pelo médico-perito judicial. Em anexo a essa impugnação, o assistente-técnico, para provar, juntou cópia de farta doutrina médica nacional e estrangeira, em prol da cirurgia adotada como terapia, e da técnica cirúrgica observada pela Dra. Mariana. Apontou e comprovou os resultados estatísticos que indicavam essa técnica como a melhor. O advogado de Dra. Mariana, Dr. Neri, analisando o laudo pericial e o confrontando com o parecer de seu assistente-técnico, pediu a realização de nova perícia, por meio de novo médico-perito. Acentuou, ainda, para justificar esse pedido, que médico-perito não é julgador, assim como qualquer perito judicial de outras áreas. Que, sobre fatos controvertidos em julgamento judicial, todos os peritos nomeados são, apenas, analisadores/pesquisadores/informadores. Não mais que isso.

O mau julgador e seu preconceito

De nada adiantou tudo isso. O Juiz de Direito, a quem estava afeto o julgamento, já estava com o seu juízo de cognição formado de que Dra. Mariana era culpada, porque a cirurgia não era necessária e que, ainda, para a sua realização, utilizou técnica menos indicada, conforme laudo do médico-perito. Constatou-se, bem posteriormente ao julgamento cível, que esse juiz, em sua vivência e formação sociocultural, alguns anos antes de seu ingresso na Magistratura, sofrera um revés na pessoa de um sobrinho querido e que falecera vítima de autêntico erro médico, em cirurgia eleti-va, ou seja, programada. Entretanto, esse erro médico não foi confirmado pela perícia médica judicial realizada. Isso porque aquele médico-perito nomeado, em trabalho censurável, concluiu pela inocorrência do erro médico, ao argumento de ausência de elementos de prova de culpa e de quaisquer outros registros que demonstrassem conduta profissional censurável. E o julgador judicial, por sua vez, atrelado ao formalismo processual de que em sede de responsabilidade subjetiva cabe ao autor provar a culpa do réu, inocentou este, pela ausência dessa prova. Submetido ao reexame pelo Tribunal, por meio de recurso de apelação, a sentença foi mantida com base no mesmo formalismo processual, de entendimento de que, em sede de responsabilidade subjetiva, cumpre à vítima provar o culpa do réu. A partir dessa injustiça, esse cidadão, agora magistrado, consolidou pre-

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venção contra os profissionais da Medicina, presumindo, equivocadamen-te, que todos eles, em espírito de corpo, formam a...

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