A execução extrajudicial de créditos do sistema de financiamento imobiliário

AutorSamir José Caetano Martins
CargoMestre em Direito (UGF). Advogado.
Páginas292-318

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1. Introdução

Em mais uma tentativa de reaquecer o mercado imobiliário, foi editada a Lei do Sistema de Financiamento Imobiliário (Lei nº 9.514/97) – que não exclui a permanência do combalido Sistema Financeiro da Habitação – a qual tem como objetivo básico minimizar os riscos dos investimentos em operações imobiliárias, o que tende a conferir uma maior rentabilidade aos investidores e, assim, atrair um maior volume de recursos para o setor.

Para atingir seu objetivo, a Lei nº 9.514/97 conta, em linhas gerais, com três instrumentos: (i) o reforço da securitização de créditos imobiliários (que já fora sistematizada pela Lei nº 8.668/93 e pelas Instruções da Comissão de Valores Mobiliários nº 205/94 e 206/94); (ii) o aperfeiçoamento do sistema de garantias contratuais e (iii) a previsão da Execução Extrajudicial para satisfação de créditos garantidos por alienação fiduciária em garantia sobre bem imóvel.

Um imóvel (rectius: o direito de propriedade ou outros direitos reais sobre coisa imóvel, como o direito real de aquisição) pode servir como lastro da garantia do adimplemento de qualquer obrigação, inclusive da obrigação de restituir o valor emprestado para a aquisição do próprio imóvel1. Dentre as diversas espécies de garantia, pode ser escolhida a fidúcia. A fidúcia pode ser operacionalizada por meio de diversos instrumentos jurídicos, entre eles a alienação fiduciária em garantia, que passou a ter como objeto tanto bens móveis quanto imóveis por força da Lei nº 9.514/97.

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Ocorrendo o inadimplemento da obrigação garantida por alienação fiduciária em garantia, a propriedade do imóvel se consolida no patrimônio do credor (isto é, o credor passa a deter não apenas a propriedade fiduciária, mas já a propriedade plena do imóvel), nos termos do artigo 26 da Lei nº 9.514/97.

Diferentemente das suas congêneres, a Lei do Sistema de Financiamento Imobiliário não apontou o número de prestações – pressupondo-se que a obrigação a ser satisfeita será paga de forma parcelada, como de ordinário ocorre no mercado imobiliário – que, não sendo pagas, autorizarão o procedimento satisfativo.

É recomendável que o credor aguarde o inadimplemento de três prestações para iniciar a Execução Extrajudicial, observando a simetria com os demais procedimentos extrajudiciais, a fim de evitar uma eventual alegação de nulidade da cláusula que prevê a imediata execução por contrariedade ao princípio da boa-fé objetiva.

Segundo prestigiosa corrente doutrinária, o credor só pode optar pela extinção do vínculo contratual quando se verificar um inadimplemento expressivo por parte do devedor: trata-se da Teoria do Adimplemento Substancial, divulgada por juristas de expressão doutrinária e influência nos tribunais, como RUY ROSADO DE AGUIAR JÚNIOR, que neste particular influenciou a orientação do Superior Tribunal de Justiça, enquanto Ministro daquela Corte, como se colhe de breve excerto do voto condutor de sua lavra:

A extinção do contrato por inadimplemento do devedor somente se justifica quando a mora causa ao credor dano de tal envergadura que não lhe interessa mais o recebimento da prestação devida, pois a economia do contrato está afetada. Se o que falta é apenas a última prestação de um contrato de financiamento com alienação fiduciária, verifica-se que o contrato foi substancialmente cumprido e deve ser mantido, cabendo ao credor executar o débito. Usar do inadimplemento parcial e de importância reduzida na economia do contrato para resolver o negócio significa ofensa ao princípio do adimplemento substancial, admitido no Direito e consagrado pela Convenção de Viena de 1980, que regula o comércio internacional. No Brasil, impõe-se como uma exigência da boa-fé objetiva, pois não é eticamente defensável que a instituição bancária alegue a mora em relação ao pagamento da última parcela, esqueça o fato de que o valor do débito foi depositado em juízo e estava à sua disposição, para vir lançar mão da forte medida de reintegração liminar na posse do bem e pedir a extinção do contrato. O deferimento de sua pretensão permitiria a retenção dos valores já recebidos e, ainda, obter a posse do veículo,Page 294para ser revendido nas condições que todos conhecemos, solução evidentemente danosa ao financiado. 2

Embora, em um primeiro momento, a propriedade plena se consolide nas mãos do credor, este não pode integrá-la definitivamente a seu patrimônio. Pelo menos, não sem antes levá-la à praça, por meio de execução judicial ou extrajudicial. Somente se, após regularmente realizadas duas praças, o imóvel não vier a ser arrematado ou a dívida não houver sido de qualquer modo satisfeita (ou de qualquer outro modo extinta), é que o imóvel passará a integrar, agora definitivamente, o patrimônio do credor, conforme será exposto no item 5 infra.

2. Natureza Jurídica da Execução Extrajudicial de Créditos

Entre os meios tradicionais de satisfação de pretensões (processo, autocomposição e autotutela), as execuções extrajudiciais de créditos certamente devem ser consideradas uma espécie peculiar de autotutela.

É conhecida de todos a evolução das técnicas de solução de conflitos da humanidade, na trajetória da pura e simples vingança privada para o processo justo, estruturado sobre um sistema de garantias fundamentais.

Mas o reconhecimento deste progresso não deve conduzir ao equívoco de equiparar a autotutela, tal como hoje é concebida, à vingança privada de outrora, daí se extraindo a ilação de que a autotutela é um mal em si mesma e que deve ser proscrita dos ordenamentos jurídicos.

Na verdade, nenhum ordenamento jurídico é capaz de absorver todos os conflitos sociais e pacificá-los eficientemente sob a forma ideal do processo justo, assim como o próprio Estado não é capaz de preencher todos os espaços da vida dos cidadãos, sendo necessário buscar o ponto de equilíbrio entre as esferas pública e privada na concretização do princípio da subsidiariedade3.

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Daí a tendência mundial de estímulo da autocomposição (que se mostra presente nos processos civil e penal, de índole individual e coletiva) e, na mesma linha, de preservação da autotutela (evidentemente, sob o estrito controle estatal).

Atualmente, a autotutela assume múltiplas faces, que ultrapassam largamente os conhecidos exemplos acadêmicos do desforço imediato para proteção possessória (artigo 1.210, § 1º, do Código Civil de 2002), do direito de podar árvores do vizinho (artigo 1.283 do Código Civil de 2002) e do direito de greve (Lei nº 7.783/89) e seu desdobramento mais brando, conhecido como “operação-tartaruga”4.

Longe da visão caricata que comparava a autotutela à vingança privada, a concepção atual de autotutela, que preferimos identificar como autotutela moderna, revela traços autocompositivos e processuais, sem que sua natureza jurídica possa ser confundida com a autocomposição e o processo.

Nesta linha, ensina ALCALÁ-ZAMORA Y CASTILLO, são fenômenos peculiares à autotutela praticada nos dias atuais a sua fiscalização processual e a sua processualização5:

“101) Por último, la fiscalización procesal de al autodefensa tiene lugar cuando se niegue o se debata judicialmente su existencia, y el proceso sirva para comprobar la realidad de sus requisitos condicionantes (como en los supuestos de legítima defensa o de estado de necesidad) o para certificar su producción y pertinencia, en ambos casos mediante la homologación correspondiente, o sea mediante el visto-bueno o aprobación a posteriori, emitido en forma de sentencia declarativa o de acertamiento, conforme dijimos en el número 33.

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102) Junto a la homologación judicial de la autodefensa, debemos mencionar otra figura, de tránsito hacia el proceso, y que tiende, como aquélla, aunque de manera distinta, a revestir la autodefensa de especiales garantías. Nos referimos a la que ya en la conferencia segunda denominamos autodefensa procesalizada (cfr. supra, núms.. 30-33), como la administrativa, la disciplinaria o la ejercida por los tribunales de honor (AD.a). La diferencia entre autodefensa homologada y autodefensa procesalizada hay que buscarla por el lado de su desenvolvimiento respectivo: en la hipótesis de homologación, el proceso sirve para comprobar y convalidar una autodefensa precedente y extraprocesal, mientras que en el caso de procesalización, la autodefensa se lleva a cabo dentro y mediante el que, abstracción hecha de la cualidad del órgano decisor, que no es un tercero imparcial, constituiría un proceso, más o menos afín al judicial, e incluso idéntico al mismo (AD.b).”

Cabe notar que o enquadramento das próprias execuções extrajudiciais de créditos como espécie de autotutela já era observada por ALCALÁ-ZAMORA Y CASTILLO, destacando inclusive os traços autocompositivos que lhe são peculiares6:

“Sin ánimo de componer una lista exhaustiva, recordaremos algunas de las manifestaciones más interesantes. [...] en materia de contratos, si bien se halla prohibido el pacto comisorio respecto de los bienes dados en prenda, se suele autorizar, en cambio, la llamada ejecución por obra del acreedor, frente a créditos pignoraticios e hipotecarios, una vez vencida la obligación que garanticen: cuando para proceder a la venta extrajudicial se exige convenio expreso, como preceptúa el artículo 2884 del código civil federal respecto de la prenda, entonces nos...

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