Extinção da Punibilidade

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas701-753

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27.1. Introdução

A punibilidade não é elemento do crime (v. n. 1.7). Tão só representa a possibilidade de ser aplicada ao transgressor da lei penal a consequência jurídica do delito, ou seja, a sanção cominada pela concreção de determinado tipo legal.

A aplicação da pena pressupõe, e com ela a punibilidade, existir (mas só quando exigível) a condição objetiva que a possibilita, não ocorrer escusa absolutória e não estar extinta a punibilidade por qualquer das causas que a lei, em virtude de certas contingências ou por motivos de conveniência ou oportunidade, enumerou como razões para a renúncia estatal do direito de punir.

Neste tópico cuidaremos unicamente das causas extintivas da punibilidade, uma vez que as condições objetivas que lhe são condicionantes foram objeto de atenção no n. 5.4 e as escusas absolutórias serão tratadas na finalização deste capítulo (n. 27.9.1).

Estranhas ao aperfeiçoamento jurídico do delito, as causas extintivas da punibilidade, à exceção da abolitio criminis (v. n. 27.4) e da anistia (v. n. 27.3), atingem somente o jus puniendi estatal, ou seja, deixam intocada a figura criminosa e, embora o crime subsista configurado, elas só eliminam a possibilidade de aplicação da pena ao infrator da lei penal. Como diz João José Leal, o crime é cometido, mas a punição, em consequência de determinados impedimentos legais, não pode ser imposta ao sujeito ativo1722.

As causas extintivas da punibilidade, em geral, podem ocorrer a qualquer momento no interregno compreendido entre a prática do fato criminoso e o efetivo término do cumprimento da sanctio juris. Desta sorte, podem fulminar a pretensão punitiva ou a pretensão executória do Estado, conforme ocorram antes (pretensão punitiva) ou depois (pretensão executória) do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Pretensão punitiva é o direito estatal de punir em potencial, na sua consideração abstrata, e surge

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com o simples cometimento do fato previsto como crime. Pretensão executória é o direito de punir já consolidado na sentença condenatória com trânsito em julgado e que confere ao Estado o direito de exigir a submissão do condenado àquela pena estabelecida no decreto condenatório.

Algumas das causas extintivas da punibilidade apenas se verificam antes da sentença e atingem só a pretensão punitiva (renúncia, perdão aceito e perempção nos crimes de ação penal privada, decadência), enquanto outras podem acontecer a qualquer tempo, antes ou depois da sentença transitada em julgado (abolitio criminis, prescrição, morte do agente), e podem esboroar tanto a pretensão punitiva como a executória. Duas das causas extintivas, porém, somente neutralizam a pretensão executória: graça e indulto.

Se uma causa extintiva desintegrar a pretensão executória, ela livra o condenado unicamente do cumprimento da pena. Subsistem, portanto, todos os efeitos secundários da condenação, como, por exemplo, o lançamento do nome do sentenciado no rol dos culpados, providência que pode gerar a reincidência ou os maus antecedentes. Se a causa extintiva atingir a pretensão punitiva, sua força liberatória alcança não só a reprimenda penal, por isentar o sujeito ativo do cumprimento, como, ainda, impede qualquer efeito secundário.

As causas extintivas da punibilidade de natureza pessoal aplicam-se exclusivamente àquele a quem condizem e não se comunicam a coautores e partícipes. De sua banda, as que apresentam índole objetiva favorecem todos que participaram do delito.

Há causas extintivas da punibilidade gerais, aplicáveis a qualquer crime (morte do agente, prescrição...), e especiais, com seu campo de incidência delimitado, aplicáveis tão só a delitos determinados (renúncia, perdão aceito e perempção nos crimes de ação penal privada...).

Cumpre, agora, focalizar a possibilidade da causa extintiva da punibilidade verificar-se no tocante a crime que é pressuposto típico de outro, ou que com ele é conexo ou dele é elemento integrante. O art. 108 do CP dirimiu o problema ao acentuar que a extinção da punibilidade de um destes crimes não se estende aos outros.

Calha exemplificar.

O delito de furto constitui pressuposto típico do crime de receptação (art. 180 e par., CP), pois este crime não adquire configuração jurídica sem um delito precedente. Se, por qualquer razão, extinguir-se a punibilidade do autor do furto (morte do agente, para ilustrar), continuará punível a receptação.

No caso de um estupro, em relação ao qual o sujeito ativo, para a sua consumação, eliminasse a vida do vigia da casa da vítima, o criminoso seria processado por homicídio qualificado pela conexão teleológica (art. 121, § 2º, n. V, CP) em concurso material com o estupro (art. 213, CP). Se o agente, porém, ao tempo em que o casamento do autor de crime sexual com a ofendida constituía causa extintiva da punibilidade (artigo 107, n. VII, do CP - revogado pela Lei n. 11.106, de 28 de março de 2005), se casasse com a vítima do estupro, extinguia-se a sua punibilidade quanto a este crime, mas a punibilidade perdurava com pertinência ao homicídio e à qualificadora da conexão1723.

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Ou: o sujeito ativo mata a vítima, seu comparsa em furto precedentemente perpetrado, para ficar com a totalidade do produto da subtração e evitar a partilha das rei furtivae. Comete, portanto, homicídio qualificado pela conexão consequencial (art. 121, § 2º, n. V, CP), pois visava a assegurar a vantagem de crime anterior, devendo ser processado pelo exício em concurso material com o furto (art. 155, CP). Se, eventualmente, ocorre a extinção da punibilidade do furto (pela prescrição, verbi gratia), subsiste, entretanto, a concernente ao homicídio e sua qualificadora.

Pela mesma razão, é insofismável que a extinção da punibilidade de réu (prescrição, morte, indulto, retroatividade de lex mitior...) em processo-crime onde se prestou falso testemunho não repercute em prol do agente do perjúrio1724.

A extinção da punibilidade do crime de ameaça ou lesão corporal não se estende ao roubo (crime complexo) do qual foi meio para a sua prática (elemento integrante). Ainda: a extinção da punibilidade relativa ao dano não alcança a qualificadora do rompimento de obstáculo no furto (art. 155, § 4º, n. I, CP)1725.

As causas extintivas da punibilidade constituem numerus clausus ou matéria de direito estrito. Isso não significa, contudo, que o rol estabelecido genericamente no art. 107 do CP seja exaustivo, mas, sim, que não existe causa extintiva da punibilidade situada fora do âmbito legal, sem o respaldo, guarida e abrigo da lei. Dessa forma, outras causas extintivas existem além das albergadas no citado art. 107, mas todas, igualmente, com amparo legal: a morte do ofendido na hipótese do preceito incriminador alojado no art. 236 do CP por ser a ação penal personalíssima, o ressarcimento do dano no peculato culposo antes do trânsito em julgado da sentença (art. 312, § 3º, CP), a sanção alternativa - quando satisfeita - aplicada em sede de transação penal nos crimes de menor potencial ofensivo (Lei n. 9.099/1995), o sursis processual cumprido (Lei n. 9.099/1995), o pagamento do tributo no crime de sonegação fiscal independentemente de prazo ou momento processual (art. 34 da Lei n. 9.248/1995 c.c. art. 69 da Lei n. 11.941/2009), o acordo de leniência cumprido nos crimes contra a ordem econômica (Lei n. 12.529/2011, § único do art. 87 ), a conciliação nos crimes contra a honra (art. 522, CPP) etc.

Impende também não confundir as causas de extinção da punibilidade com aquelas que excluem o crime, afastam a culpabilidade ou isentam o agente de pena. Enquanto as causas extintivas da punibilidade se verificam depois do crime, as causas de exclusão da ilicitude, as eximentes de culpabilidade ou as causas de isenção de pena são anteriores ou contemporâneas ao delito, na oportuna observação de Walter P. Acosta1726.

Examinemos as causas extintivas da punibilidade previstas no art. 107 do CP.

27.2. Morte do agente

A primeira causa de extinção da punibilidade que o diploma penal contempla provém do falecimento do agente (art. 107, n. I, CP).

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Mors omnia solvit, ou seja, a morte tudo apaga.

Com o falecimento, o autor do crime subtrai-se do poder punitivo estatal exatamente porque lhe escapou a própria vida, porque perdeu a sua existência. Somente em épocas primevas era possível a punição do morto ou a aplicação de sanções extensíveis aos seus familiares. Do ponto de vista retributivo - acentua Frederico Marques - não se pode cuidar da pena contra um cadáver e, do ponto de vista intimidativo ou preventivo, no seu aspecto específico, seria inútil a ameaça de qualquer reprimenda a quem já foi privado da própria vida1727. A punição dos familiares do criminoso a qualquer título, de outro lado, estaria em confronto antagônico com a natureza personalíssima da pena e violaria o preceito constitucional que estabelece o princípio (art. 5º, n. XLV, 1ª parte, CF). Como já realçava Beccaria, sanções que se impuserem ao morto ou a seus familiares recairão sobre inocentes ou sobre um corpo frio e...

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