A flexibilização, as extensas jornadas de trabalho e sua relação com os acidentes do trabalho e as doenças ocupacionais

AutorJosé Antônio Ribeiro de Oliveira Silva
Ocupação do AutorJuiz do Trabalho, Titular da 2ª Vara do Trabalho de Araraquara (SP), Gestor Regional (1º grau) do Programa de Prevenção de Acidentes do Trabalho instituído pelo Tribunal Superior do Trabalho
Páginas192-244

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3.1. A flexibilização e a ordenação do tempo de trabalho - aspectos quantitativo e qualitativo
3.1.1. A flexibilização da jornada de trabalho

O que se tem visto nas últimas décadas, especialmente a partir dos anos 90, é uma depreciação dos direitos fundamentais dos trabalhadores, em nome de uma maior flexibilidade das condições de trabalho, com a propaganda de que isso conduziria todos a uma nova realidade no século XXI. Não obstante, o que se verifica neste início de século é justamente o contrário, as constantes crises econômicas, o desemprego em massa e, o pior, um aumento alarmante dos acidentes do trabalho e das doenças ocupacionais.

Segundo Richard Sennett533, a palavra "flexibilidade" entrou na língua inglesa no século XV, sendo que seu significado derivou originalmente da simples observação de que, ainda que a árvore se dobre com o vento, seus galhos sempre voltam à posição normal. De modo que o comportamento humano deveria ser flexível, de adaptação às circunstâncias variáveis. Daí que a sociedade hoje em dia busca meios de destruir os males da rotina com a criação de instituições mais flexíveis. Não obstante, as práticas da flexibilidade se concentram "mais nas forças que dobram as pessoas". E foi com essa ideia que se instalaram nas últimas décadas do século XX novas práticas administrativas que propunham uma "reengenharia" empresarial, com uma especialização flexível da produção. Em poucas palavras, essa especialização flexível tenta colocar, cada vez mais rapidamente, produtos mais variados no mercado, sendo, pois, a antítese do sistema de produção incorporado no período conhecido por fordismo. Esse regime flexível influi diretamente na organização do tempo no local de trabalho, surgindo experiências com vários horários - inclusive a anualização do tempo de trabalho - no chamado "flexitempo", no qual "o dia de trabalho é um mosaico de pessoas trabalhando em horários diferentes, mais individualizados".

Não obstante, o autor citado observa que as mudanças organizativas não fizeram desaparecer o controle sobre o tempo de trabalho, pois ainda que o trabalhador passe a trabalhar em seu próprio domicílio, a empresa controla seu horário de trabalho por meio da informática. Assim, o controle do tempo de trabalho passa do relógio de ponto para a tela do computador. Ainda que o trabalho seja fisicamente descentralizado, o poder sobre o trabalhador se torna mais direto. A aparência de uma nova liberdade é enganosa. Por isso, o teletrabalho demonstra que o tempo da flexibilidade é, em verdade, "o tempo de um novo poder"534 (destaques não originais).

Na sequência se analisará essa onda de flexibilização, para que posteriormente se possa estudar as perversas consequências na saúde do trabalhador, proporcionadas pelas altas doses de flexibilidade na normativa sobre jornada de trabalho.

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Como já antecipado no segundo capítulo, o estudo dos efeitos do tempo de trabalho excessivo no desfrute dos direitos fundamentais dos trabalhadores, sobretudo do direito à saúde, necessita levar em conta os dois aspectos da ordenação do tempo de trabalho: o aspecto quantitativo, que diz respeito a sua "duração" (quantidade de tempo de trabalho), assim como o chamado de qualitativo, que se refere à "distribuição" da jornada de trabalho ao longo do dia, da semana, do mês ou inclusive do ano, na perversa anualização do tempo de trabalho.

Também já destacado que hoje em dia a vertente qualitativa da jornada de trabalho vai adquirindo cada vez maior importância, não sendo mais suficiente a tradicional classificação do tempo de trabalho em jornada ordinária, horas extraordinárias e jornadas especiais. De modo que assume grande relevância a análise de outras categorias relacionadas ao tema, como a prorrogação derivada dos acordos de compensação (banco de horas), o tempo de disponibilidade ou à disposição do empregador, o tempo de mera presença, o tempo de espera - veja-se a recente legislação do motorista profissional - e outras tantas.

Ademais, há que se dar atenção especial a uma dimensão do tempo de trabalho que não tem sido objeto de maiores (e melhores) estudos por parte da doutrina: o aumento considerável da produtivi-dade dos trabalhadores, com o progresso da tecnologia, mas principalmente pelo aumento do ritmo de trabalho. É dizer, as empresas estão exigindo cada vez mais dos trabalhadores uma produtividade crescente, numa intensificação do trabalho que pode ser equiparada às exigências do período obscuro da Revolução Industrial.

Não obstante, não houve nenhum debate sério sobre o aumento da produtividade no seio do Direito do Trabalho, olvidando-se de que o avanço da tecnologia sempre logra que o trabalhador produza mais num tempo menor, motivo pelo qual a contrapartida poderia ter sido o aumento do tempo livre; porém não se tem presenciado isso na realidade.

Pois bem, o fator produtividade "é absolutamente determinante como terceiro vértice da secular dialética entre empregadores e trabalhadores, que não pode ser reduzida ao binômio jornada/salário". Esse problema também está relacionado ao aspecto qualitativo da jornada de trabalho, que diz respeito à sua distribuição ao longo do dia, da semana, do mês ou do ano. A se considerar que hoje em dia os serviços representam uma altíssima porcentagem do PIB da maior parte dos países, deve-se considerar que é neste setor da economia que a distribuição do tempo de trabalho assume a faceta que mais evidencia a colisão de interesses entre empregadores e trabalhadores, já que o empregador deseja "aproveitar - e pagar - exclusivamente as horas que lhe resultem produtivas". Esse desejo por maior flexibilidade do tempo de trabalho, vale dizer, "por aumentar as faculdades empresariais no terreno da distribuição", é o que suscita o exame do aspecto qualitativo - distribuição - da jornada de trabalho535.

Nessa matéria, de se notar que a demanda por maior flexibilidade do tempo de trabalho, sobretudo no grande setor da prestação de serviços, tem proporcionado uma verdadeira desconstrução do Direito do Trabalho. Ocorre que essa flexibilização tem conduzido o número de acidentes do trabalho, de doenças ocupacionais e inclusive de mortes ou suicídios relacionados ao trabalho a um nível tão elevado que se faz urgente uma tomada de medidas por parte dos governos e organismos que se empenham na luta pela proteção dos direitos fundamentais dos trabalhadores, pois a retirada de direitos sociais não tem resolvido os problemas decorrentes de tantas crises econômicas, como se constata na análise dos estudos mais sérios a esse respeito.

Sob essa perspectiva é que se analisará a flexibilização dos direitos laborais referentes ao tempo de trabalho. Com efeito, há uma incidência do aspecto qualitativo da jornada de trabalho na definição do quantum de trabalho a ser prestado ao empregador. Como já mencionado, "enquanto a dimensão quantitativa representa o conjunto máximo de horas de trabalho, legal e/ou convencional, que

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o trabalhador deve ao empregador em troca de um salário", a dimensão qualitativa significa que a distribuição da jornada deve ser concretizada "em módulos temporários concretos" (dia, semana, mês, ano), nos quais se dará "a repartição de referida quantidade máxima de tempo de trabalho"536.

Neste sentido, Sagardoy Bengoechea537 observa que o fator tempo na relação de trabalho tem repercussões de diversas índoles, sendo que, desde o ponto de vista econômico, é bastante óbvia a transcendência da jornada de trabalho não só no aspecto quantitativo como também no qualitativo - "distribuição da jornada, flexibilidade da mesma e certa coordenação em nível internacional, nacional ou autonômico" (a Espanha é constituída de Comunidades Autônomas) -, o que influi no contexto econômico do contrato de trabalho.

Destarte, nos tópicos seguintes, será investigada a flexibilização do tempo de trabalho nestas duas vertentes: o aspecto quantitativo e o qualitativo da jornada de trabalho.

3.1.2. As crises econômicas e a flexibilização

Cabe apontar, de início, que desde a década de 1980 e, sobretudo, a partir da de 1990, a Espanha tem promovido uma forte flexibilização das normas de proteção aos direitos básicos dos trabalhadores, acompanhando, por certo, uma tendência dos países do primeiro mundo, com claras repercussões nos países em desenvolvimento, inclusive no Brasil.

Quando da reforma de seu Estatuto dos Trabalhadores, levada a efeito pelo Real Decreto Legislativo n. 1/1995 - que incorporou a Lei n. 11/1994, o pontapé inicial da reforma -, propôs-se uma revisão do sistema de relações trabalhistas, presidida em grande medida pelo critério da flexibilidade, com o argumento da...

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