Exposicao a risco e captacao em fundos de investimento: Os cotistas monitoram a alocacao de ativos?

AutorSchiozer, Rafael Felipe
CargoArt

(Risk Exposure and Net Flow in Investment Funds: Do Shareholders Monitor Asset Allocation?)

  1. Introdução

    A indústria de fundos no Brasil foi fortemente afetada pela crise financeira internacional que se seguiu à quebra do banco Lehman Brothers em setembro de 2008. Mêsmo os segmentos de fundos de renda fixa e referenciados, considerados os mais seguros, apresentaram uma captação líquida (saldo líquido de aportes e resgates) negativa de cerca de R$50 bilhões entre setembro de 2008 e marco de 2009, fase mais aguda da crise, uma perda equivalente a quase 10% de seu patrimonio antes da crise. (1)

    Essa onda de saques não foi um fenomeno pontual brasileiro. Na industria de fundos americana, segundo Schmidt et al. (2013), o principal impacto ocorreu no segmento de fundos de money market, especialmente após a quebra do Reserve Primary Fund (RPF), fundo que detinha grande exposição a ativos ligados ão Lehman Brothers. A quebra do RPF desencadeou uma grande quantidade de saques aos fundos de money market que detinham ativos com risco de crédito, independentemente de estarem ou não expostos ão Lehman Brothers. Ão mêsmo tempo, fundos que carregavam títulos públicos sofreram rápidos e volumosos aportes.

    O objetivo desse estudo é identificar se os cotistas de fundos de investimento monitoram a alocação de ativos do fundo e reagem ão risco assumido pelos gestores. Mais especificamente, investigamos se uma variação exógena no risco dos ativos do fundo causa saques de cotistas. Com essa finalidade, utilizamos o choque exógeno causado pela crise financeira internacional que se seguiu à quebra do banco Lehman Brothers em 2008, que teve impacto sobre a percepção dos investidores sobre o risco de crédito dos passivos emitidos por bancos brasileiros (principalmente os CDBs), para testar se a exposição a esses ativos é determinante para a captação dos fundos.

    Essa variação exógena no risco é o experimento ideal para testar a relação entre risco e captação. Em outros contextos, seria difícil para o investigador empírico identificar o impacto (causal) do risco do fundo em sua captação, pois as variacoes observadas no risco dos ativos quase sempre advem de decisões de realocação por parte do gestor (que são endogenas a captação), ou são acompanhadas de variação nos retornos observados pelo fundo. Assim, esse estudo se insere na literatura sobre disciplina de mercado, na linha de Martinez-Peria & Schmukler (2001), sobre corridas a fundos, na linha dos trabalhos de Schmidt et al. (2013) e Ben-David et al. (2012), que notam que as corridas a fundos podem se assemelhar a corridas bancarias, assunto extensivamente tratado na literatura economicofinanceira. Adicionalmente, tambem são levados em conta aspectos dos trabalhos relacionados a smartmoney (que relacionam a alocação de recursos dos investidores ão desempenho dos fundos), como Ippolito (1992), Gruber (1996), Wermers (2003). Finalmente, esse trabalho complementa também o estudo de Oliveira et al. (no prelo), que identificou que os depositantes perceberam uma garantia governamental implícita, dada apenas aos grandes bancos brasileiros durante o período mais agudo da crise de 2008.

    Focamos especificamente nos fundos Referenciados e de Renda Fixa, em detrimento das outras categorias de fundos (acoes, multimercados, cambiais etc), por dois motivos: i) esses fundos apresentavam, entre 2007 e 2010, exposição quase nula a outros tipos de risco de crédito que não os de instrumentos emitidos por bancos (a exposição a instrumentos como debêntures e outros passivos emitidos por empresas não-financeiras é desprezível); ii) esses fundos não estão expostos, por definição, a outros tipos de risco de mercado que não o de taxas de juros. Como o interesse específico é na influência do risco dos ativos do fundo sobre os seus saques e aportes, a inclusão de outras categorias de fundos tornaria a análise virtualmente impossível, visto que a crise presumivelmente afetou não só o risco dos ativos, como também as expectativas de retorno, sendo difícil isolar classes específicas de risco.

    Os resultados mostram que, dentre os fundos não-exclusivos, aqueles que carregavam ativos que tiveram sua percepção de risco de credito aumentado durante a crise de 2008 (CDBs de bancos medios e pequenos) sofreram mais saques, ão passo que, fora da crise, a exposição a esses mêsmos ativos teve um pequeno efeito positivo sobre a captação. O efeito e estatisticamente e economicamente significante: a exposição a esses ativos de um desvio-padrão acima da média causa uma captação líquida negativa da ordem de 6% durante a crise. Nos fundos exclusivos, em que supostamente o cotista exerce maior influencia sobre a gestão, e os incentivos para saques são menores, não se observa influencia da exposição a esses ativos sobre as captacoes, mas os gestores realocam seus ativos, diminuindo sua exposição aos instrumentos cuja percepção de risco foi aumentada.

    O restante do artigo esta dividido da seguinte maneira: a proxima seção discute aspectos da crise de 2008 que tem importancia para a analise a ser realizada e a literatura concernente ão tema; a seção 3 discute a metodologia adotada; a seção 4 apresenta a base de dados e as estatísticas descritivas; a seção 5 mostra os resultados das estimacoes dos modelos econometricos e a ultima seção conclui.

  2. A Crise de 2008, Corridas Bancárias e a Indústria de Fundos

    Nos Estados Unidos, o episodio da falencia do banco Lehman Brothers, em setembro de 2008, exacerbou a assimetria de informação e a demanda por liquidez, o que culminou numa onda de saques à indústria de money market funds, totalizando 300 bilhões de dólares na semana que se seguiu a falencia do banco, volume equivalente a 8% do total de ativos dessa classe de fundos na epoca (Schmidt et al., 2013). O forte fluxo de resgates so diminuiu com o anúncio pelo Tesouro americano, no dia 19 de setembro de 2008, de que garantiria os investimentos em fundos de money market, medida que se assemelha à criação de um seguro-depósito. Apesar de ter conseguido diminuir a intensidade da onda de saques, a sequencia de fluxos negativos só foi interrompida após algumas semanas. Schmidt et al. (2013) mostram ainda que, ão mêsmo tempo em que se observou essa onda de saques aos fundos que carregavam ativos com risco de crédito, houve uma onda de aportes a fundos de money market que investiam basicamente em títulos do tesouro americano, num típico movimento de flight-to-quality.

    Os fundos de money market nos Estados Unidos têm como principais características grande liquidez dada aos cotistas e a ausência de marcação a mercado dos seus ativos. Dessa forma, a posse de cotas desses fundos se assemelha ã detenção de depósitos bancários (Schmidt et al., 2013) e, caso os cotistas acreditem que as cotas estão sobrevalorizadas relativamente aos ativos do fundo, ou que outros cotistas poderiam sacar os recursos, ocasionando uma necessidade de venda rãpida dos ativos (fire sale) hã um incentivo para sacar rapidamente e deixar o prejuízo aos cotistas remanescentes (o comportamento conhecido como first-come, first-served), analogamente ão descrito por Diamond & Dybvig (1983) para bancos em situacoes de estresse.

    Segundo Allen & Carletti (2010), a principal consequencia da falencia do banco Lehman Brothers foi o sinal enviado aos mercados sobre a fragilidade de institutes financeiras. No Brasil, a crise se transmitiu com uma rãpida depreciação do Real e impactos sobre a atividade economica como um todo. No setor bancário, de acordo com Mêsquita & Tortos (2010), "A combinação de fatores estruturais (...) deixou institutes de menor porte vulneráveis a uma constrição de liquidez".

    Os fundos de Renda Fixa e Referenciados brasileiros guardam alguma semelhança com os fundos de money market americanos e com depositos bancários. Em especial, a grande maioria desses fundos dá liquidez imédiata ão cotista, o que permite grande mobilidade aos recursos do investidor. Mêsmo com a existencia de marcação a mercado, diferentemente dos fundos de money market americanos e dos depósitos bancários, o valor de alguns ativos com pouca liquidez no mercado secundãrio--como os CDBs --é discutível, em especial em épocas de grande incerteza na economia. A opacidade dos ativos bancários pode dificultar a obtenção de valores "justos" ou "de mercado" para passivos emitidos por bancos. Assim, mêsmo com a adoção no Brasil da marcação a mercado para os fundos, o problema do first-come, first-served observado nos fundos americanos relatado acima pode ter ocorrido em algum grau nos fundos brasileiros. De fato, o movimento de saques em volumês bem superiores às captacoes na industria de fundos brasileiros durante a crise de 2008 se assemelha em muitos aspectos a uma corrida bancária.

    Existem duas linhas teóricas básicas para explicar corridas bancárias. O modelo de Diamond & Dybvig (1983) afirma que corridas são provocadas pela reação que os investidores tem ão perceber possíveis choques negativos à economia, que podem fazer com que outros depositantes possam demandar liquidez, gerando uma possibilidade de onda de saques. Mêsmo que cada investidor acredite que o banco encontra-se numa situação de solvencia, o temor de que o banco seja obrigado a negociar com descontos seus ativos de baixa liquidez (fire sale) para fazer frente aos saques iniciais causa uma reação em cadeia de saques (uma especie de profecia auto-realizavel) que, por sua vez, pode provocar a faiencia do banco.

    Na segunda linha teórica, apresentada por Jacklin & Bhattacharya (1988), a corrida bancária é gerada pela percepção dos investidores sobre a solvencia da instituição financeira, e assim os investidores diferenciariam as instituicões com bons fundamentos daquelas com fundamentos ruins, sacando seus depósitos das ultimas. Assim, os investidores seriam capazes de exercer disciplina de mercado, sacando seus recursos de institutes com maiores riscos. Grande parte da literatura empírica suporta a visão de corridas baseadas...

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