Exposição dos Motivos que Levaram à Apresentação do Estatuto da Igualdade Racial

AutorPaulo Renato Paim
Páginas57-75

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Ver nota 1

O Estatuto da Igualdade Racial: A dor da esperança!

20 anos de sangue, suor e lágrimas.

Não são as palavras nem as ações, a maior dor da discriminação é sentida no olhar. É algo inexplicável, mas dói, dói muito, chega a atravessar o nosso peito, cutucar o nosso coração e atingir a nossa alma.

Não pensem que foi fácil, não pensem que é fácil ver o Estatuto da Igualdade Racial sendo aprovado após dez anos de debate no Congresso Nacional sem grande parte das reivindicações dos defensores dos direitos humanos, do movimento negro e de não negros.

Mas ele é nosso! Possui uma representatividade jurídica, histórica, legal e moral. Sabemos que o fato de a abolição da escravidão não ter trazido consigo políticas públicas para o povo negro não fez com que eles desistissem de sua liberdade e voltassem para as senzalas. Eles resistiram. A resistência é nossa marca. Nós seguimos lutando. Este é o Estatuto que temos para atingir o que queremos.

Após trezentos anos de escravidão e cento e vinte e dois anos pós-abolição, o Estado brasileiro abre os olhos e começa a encarar a dura realidade do processo de exclusão vivenciado pelos descendentes de escravos no país. Esse processo foi iniciado desde a travessia, como retrata Castro Alves no poema Navio Negreiro, do qual seguem alguns trechos:

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"Desce do espaço imenso, ó águia do oceano! Desce mais ... ainda mais... não pode olhar humano Como o teu mergulhar no brigue voador!

Mas que vejo eu aí... Que quadro d’amarguras!

É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...

Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus!

Que horror!

(...)

Quem são? Se a estrela se cala,

Se a vaga à pressa resvala

Como um cúmplice fugaz,

Perante a noite confusa...

Dize-o tu, severa Musa,

Musa libérrima, audaz!...

São os filhos do deserto,

Onde a terra esposa a luz.

Onde vive em campo aberto

A tribo dos homens nus...

São os guerreiros ousados

Que com os tigres mosqueados

Combatem na solidão.

Ontem simples, fortes, bravos.

Hoje míseros escravos,

Sem luz, sem ar, sem razão..."

Este não é um momento para ficarmos chorando ou procurando culpados. A história está aí, não pode ser apagada, mas a partir de agora pode ser escrita com novos contornos.

Temos que olhar para o futuro, sem esquecer o passado.

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O Estatuto da Igualdade Racial não é o fim, nem o começo! Ele faz parte de um novo patamar da formulação das políticas públicas do país.

Foi na África do Sul, em 1990, com Benedita da Silva, Carlos Albeto Caó, Edmilson Valentim, Domingos Leoneli e João Hermann, quando exigíamos, em nome do povo brasileiro, a liberdade de Nelson Mandela, que recebi das mãos de Winnie Mandela a "Carta da Liberdade". Ela continha um programa fundamental para a causa anti-apartheid. Foi divulgada em 1955, pelo Congresso do Povo, do qual Mandela fazia parte. Seu preâmbulo dizia:

"Nós, o Povo da África do Sul, declaramos para todo o nosso país e o mundo saberem: que a África do Sul pertence a todos os que nela vivem, negros e brancos, e que nenhum governo pode afirmar autoridade a menos que seja baseado na vontade de todas as pessoas; que nosso povo tem sido roubado em seu direito natural à terra, à liberdade e à paz por uma forma de governo baseado na injustiça e desigualdade; que o nosso país nunca será próspero ou livre até que todo o nosso povo viva em fraternidade, gozando dos mesmos direitos e oportunidades; que só um Estado democrático, baseado na vontade de todas as pessoas, pode garantir o direito de primogenitura a todos sem distinção de cor, raça, sexo ou credo; (...)."

A viagem mexeu com nossos sentimentos, desde o momento que diziam que o avião da Varig, com os deputados negros, não pousaria na África do Sul.

Mas o momento mais marcante, que mexeu muito comigo, foi quando participamos de uma reunião, quase secreta, em uma igreja, para debater as táticas e estratégias contra o apartheid. Achei que encontraria somente negros, mas o espaço estava dividido, praticamente meio a meio, negros e brancos com um só objetivo: a busca de caminhos para a igualdade.

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Outro momento que jamais esquecerei foi quando caminhávamos pelas ruas de Johannesburg e assistimos a uma passeata com crianças, jovens e idosos embalados pela batida do tambor, de lança na mão, numa só voz gritando: Amandla, Amandla, Amandla, ou seja, Liberdade, Liberdade, Liberdade! Naquele mesmo ano, Mandela foi libertado.

Retornando ao Brasil, após aquela passagem pela África, já não era mais o mesmo, após trabalhar e apreender com Edmilson, Benedita e Caó, os textos contra a discriminação racial na Constituinte, quando, juntos, inserimos o crime de racismo como imprescritível e inafiançável e a titulação de terras quilombolas no artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição. Em seguida, relatando a Lei Caó, que regulamentou o crime de racismo, senti que poderia ir além.

E eu fui... Com o apoio do movimento negro apresentei projetos que tipificam a injúria racial, criam o estudo da história da África e dos afrobrasileiros nas escolas, e outros projetos que têm relação com a saúde da população negra, indenização às vitimas da escravidão, feriado de Zumbi dos Palmares, reserva de vagas nas peças publicitárias e na mídia. Enfim, desde 1990 até 2000 foram mais de 20 (vinte) projetos sobre o tema. Nós debatemos ostensivamente esses projetos, alguns consegui aprovar, outros não.

Mas, como diz Abdias do Nascimento: "o debate já é uma vitória!" E disso tenho muito orgulho! Vejam, foram 10 anos de ideias e projetos apresentados, até a concretização do Estatuto da Igualdade Racial, em 2000.

Defender as causas sociais, em especial a igualdade racial, é um tema muito árduo no Congresso Nacional; a correlação de forças é desigual, não chega a 10% o número de parlamentares negros na Câmara dos Deputados. No Senado, atualmente, estou só, um único negro, entre oitenta e um Senadores, mas isso nunca foi motivo para me esconder. Em 24 anos de vida pública jamais me abstive, seja nos momentos bons ou ruins, da luta, com erros e acertos, nos meus projetos ou nos que fui chamado a relatar e votar.

Nesta caminhada, eu tenho lado! O dos trabalhadores e dos discriminados.

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Gostaria de dizer para os pessimistas, aqueles que são contra tudo e contra todos, que eu sei que aqueles que defendem, no Congresso Nacional, negros, índios, ciganos, idosos e deficientes, a livre orientação sexual e a liberdade religiosa, não voltam, mas isso nunca me intimidou. Essa luta está no meu sangue, no meu coração.

Aos 60 anos, minha vida é um misto de flores e espinhos, de semeaduras e de colheitas e também de tempestades, mas eu posso afirmar, sem dúvida, que, ao percorrer essa estrada encontrei muito mais alegrias do que tristezas.

Ao olhar para trás, vejo um menino negro de calças curtas, com seus nove irmãos e que aos oito anos amassava barro numa fábrica de vasos na cidade onde nasceu, Caxias do Sul.

Mais tarde esse menino passou a vender quadros e foi também marceneiro, e, aos dez anos, foi fazer voz de gente grande na feira livre da capital, Porto Alegre, longe dos seus pais.

Então um dia, com 12 anos, ele viu seu pai apontar ao longe na feira e correu para os braços dele. O menino sabia que corria para o futuro que o esperava, sabia que era o início de uma vida nova. Abriu os braços como se estivesse a voar.

E foi assim, minha gente, que o menino seguiu em direção ao seu pai, abraçando-o, apertando-o com força e ouvindo as palavras que tanto desejava: - Filho, você foi chamado para a vaga que disputou no concurso para o SENAI, em Caxias do Sul. Você agora vai voltar para junto de mim, de sua mãe e de seus irmãos! E dessa forma ele voltou para casa, e a estrada de 40 km que percorria a pé ou de bicicleta diariamente, para chegar ao SENAI, foi se fazendo estrada da vida, de muito estudo e aprendizado, de descobertas sobre o mundo dos adultos.

Essa foi a porta da minha oportunidade, a minha experiência, mas sei que não existe fórmula, cada um deve escrever o seu caminho, mas demonstra que a ideia do Estatuto da Igualdade Racial é direcionar um olhar especifico para uma parcela da população, aquela para a qual as portas, em grande parte, permanecem fechadas.

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Lembro-me também quando, no dia da minha formatura, fui barrado em um clube porque era negro. Meus amigos brancos também se recusaram a entrar, e fizemos uma grande festa no meio da praça sob a luz do luar, os...

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