Exigibilidade de Conduta Diversa e Dirimentes

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas503-513

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20.1. Noção

Outro requisito, lembra Bettiol, é necessário para reconhecer como culpável um fato lesivo: o da normalidade das circunstâncias com que a ação foi praticada1202.

Nesta quadra é que se coloca a questão da exigibilidade de outra conduta.

A exigibilidade de conduta diversa outorga desate estrutural à culpabilidade, inserida no juízo de reprovação que exprime o seu conteúdo normativo (v. n. 14.2).

O cometimento de fato típico e antijurídico, por agente imputável que procedeu com dolo ou culpa, de nada vale em termos penais se dele não era exigível, nas circunstâncias em que atuou, comportamento diferente. Não se pode formular um juízo de censura ou reprovação se do sujeito ativo era inviável requestar outra conduta.

Nessa conjuntura, deixa de aperfeiçoar-se a culpabilidade diante da inexigibilidade de conduta diversa (Unzumutbarkeit).

Não é admissível, em suma, declarar reprovável uma conduta, e culpável o seu autor, se outra não se podia exigir1203. A conduta só é reprovável quando, podendo o sujeito ativo praticar conduta diversa, de acordo com a ordem jurídica, comete outra, proibida1204. Em síntese: o Direito Penal não pode proclamar criminosa uma conduta que não encontra condições para censurar ou reprovar.

A extensão que se deve conferir ao campo de abrangência da inexigibilidade de outra conduta é que constitui verdadeira vexata quaestio. Não comungamos o pensamento de insignes penalistas que alargam em demasia os perímetros de aferição da inexigibilidade de outra conduta e a perscrutam sem bases legais fixas e exclusivamente consoante as circunstâncias que se apresentam, preconizando que cabe unicamente ao julgador avaliar a gravidade e a seriedade da situação histórica na qual o agente atua, pois o

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magistrado deve ser o único juiz da situação1205. Não procede, conforme nos parece, erigir a inexigibilidade de outra conduta como forma genérica de exclusão da culpabilidade. O elastério exagerado ou indiscriminado debilita a repressão e abre espaço para tergiversações e subterfúgios à responsabilidade. Não se deve conferir carta de indulgência ampla aos delinquentes. A inexigibilidade de outro comportamento, portanto, não deve ser examinada pelo normativismo puro, id est, com elasticidade e amplitude, cumprindo seja vinculada a situações específica e explicitamente determinadas, incrustadas na lei como dirimentes.

A dirimente pode compreender todo e qualquer fato previsto como crime. Pouco importa a natureza do delito (crimes dolosos ou culposos, comissivos ou omissivos, instantâneos ou permanentes, consumados ou tentados etc). Fora do setor delineado legalmente para a dirimente, porém, não deve existir isenção de responsabilidade.

Constituem dirimentes da exigibilidade de outra conduta, exclusivamente, a coação moral irresistível e a estrita obediência a ordem não manifestamente ilegal de superior hierárquico, ambas consagradas no art. 22 do CP. Se a situação examinada não se amoldar a uma destas hipóteses, do agente era esperado comportamento diverso, perfazendo-se a sua culpabilidade. Assim, verbi gratia, para os partidários da inexigibilidade com amplitude, não existiria crime na ação do motorista que desenvolvesse no veículo velocidade excessiva, com ulterior evento de dano, para assistir à agonia do filho ou outro parente no local em que se encontrasse. No entanto, para quem sufraga a inexigibilidade na sua aferição restrita (subordinada exclusivamente aos casos legalmente enumerados), que é a nossa posição, ocorre delito na situação figurada, pois não se ajusta às hipóteses previstas no art. 22 do estatuto penal. As mesmas soluções são possíveis, conforme a posição adotada para a averiguação da inexigibilidade, no caso lembrado por Anibal Bruno, que se reporta a Eberhardt Schmidt e Welzel, da mãe que, não podendo abandonar o emprego nem tendo alguém que ficasse a vigiar a sua criança, deixa o filhinho de três anos só em casa, para ir ao trabalho, e não prevê que a criança pode subir a uma cadeira, depois a uma mesa e cair, sofrendo graves lesões1206. Nessa hipótese, por falta de encarte legal ao normativamente previsto (art. 22, CP), constitui nosso pensar que não ocorreria a inexigibilidade de outra conduta.

Duas únicas exceções afiguram-nos possíveis ao hermetismo das causas dirimentes pela inexigibilidade de conduta diversa, podendo configurar-se ao largo de seus estreitos e rigorosos limites: no revide imediato e moderado a ofensa verbal à honra (v. n. 11.7) e no aborto eugênico1207.

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Por derradeiro, é imprescindível salientar que o art. 22 do CP contempla causas excludentes da culpabilidade (dirimentes ou eximentes), e não da antijuridicidade (descriminantes). Nas situações previstas (coação e estrita obediência), o ato praticado não é lícito. O que ocorre é que não é livre. Não fosse assim, o autor da coação ou da ordem ilegal não poderia ser responsabilizado. Aliás, se lícito fosse o ato do coagido ou do subordinado, a pessoa, a que seu gesto visa, não poderia defender-se, já que não há legítima defesa contra atos justos (v. n. 11.2), o que, efetivamente, não ocorre1208.

20.2. Coação moral irresistível

Vislumbra-se na coação moral a existência de uma força que atua sobre o sujeito ativo e domina a sua vontade, compelindo-o à concreção do fato previsto como crime.

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Se a força atuante for física (vis absoluta), ou seja, a que atua sobre o corpo, subordinando totalmente a do autor simplesmente material do fato, deixa de existir a própria tipicidade. Será ele, nesse caso, mero instrumento de outrem, subjugado pelo predomínio da força física que o dirige e conduz. A pessoa assim coagida não realiza ação penalmente relevante pela carência de qualquer impulso volitivo, de modo que, no que lhe concerne, não há crime pela falta de tipicidade (v. n. 3.1).

Se a força que opera sobre o sujeito ativo provém da intimidação e da ameaça (vis compulsiva), atuando exclusivamente sobre o seu ânimo, a coação é moral.

A ameaça que caracteriza a coação moral pode recair sobre o próprio coato ou mesmo sobre terceiro que lhe seja sentimentalmente caro (filhos, pais, esposa, irmão...).

Coagido, o agente tem a liberdade ou a faculdade de escolher e optar. Se ele decide pelo mal que representa o crime, cujo cometimento lhe é determinado, para não sofrer o mal vaticinado pela ameaça como represália, é inegável que, pela sua eleição, manifesta a sua vontade. Por isso, a ação realizada contém visos de tipicidade (v. n. 3.1).

Diversificam-se, consequentemente, a coação física e a coação moral. Na primeira o coato não manifesta qualquer conteúdo anímico, ao passo que na última verifica-se aspecto volitivo pela opção tomada. Por tal razão, enquanto a vis absoluta obstrui, no tocante ao coagido, a própria configuração típica do fato, a vis compulsiva não a impede e projeta a situação para análise no âmbito da culpabilidade, a fim de dessumir-se do juízo de reprovação pela exigibilidade ou inexigibilidade de conduta diversa.

A coação moral afasta a culpabilidade quando é irresistível.

É irresistível a coação quando ela se apresenta insuperável e invencível pelo comum dos homens, caracterizada por força intimidativa que somente possa ser vencida por meio de extrema renúncia ou energia extraordinária, de verdadeiro ato de bravura ou heroísmo, inexigíveis juridicamente do ser humano (v. n. 12.1). Coação moral irresistível, destarte, como salientou o Des.Cunha Camargo, é aquela a que o coato não pode subtrair-se, mas apenas sucumbir ante o decreto do inexorável1209. Como os cidadãos não estão obrigados, juridicamente, ao altruísmo ou à coragem extrema, é iniludível que a lei havia de contemporizar.

Para aquilatar, no entanto, se a coação apresenta conotação irresistível, há mister que os males que ela coloca em jogo sejam devidamente mensurados.

De feito.

A coação moral sempre descortina para o coactus uma perspectiva, diante da qual ele tem a possibilidade de escolha: ou perpetra o ilícito que lhe é determinado ou sofre as consequências prometidas com a ameaça.

Há, portanto, dois males em confronto: o mal que o próprio ilícito representa e o mal vaticinado com a intimidação.

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Se o mal que caracteriza a ameaça, que deve ser a baliza, o parâmetro, o referencial do balanceamento, apresentar dimensão maior ou ao menos equivalente em relação ao mal do crime, deve-se considerar a coação irresistível. Se, ao contrário, o mal da ameaça perder em significação no cotejo com o mal do delito, isto é, se for menor que o gravame representado pelo crime, a coação moral era superável e vencível com o esforço e a abdicação requestáveis do comum dos homens. Desta sorte, sendo a coação resistível, ela não esboroa a culpabilidade ou confuta o crime, sendo reconhecível, no caso, mera circunstância atenuante (art. 65, n. III, "c", CP).

Se o Direito não exige dos pobres mortais - assinala M. E. Mayer - que sejam santos ou heróis, não os admite, por outro lado, como frouxos ou poltrões1210.

Na hipótese retrofigurada do gerente de banco (v. n. 3.1) que se apropria de numerário e o entrega ao extorsionário para não ver sacrificada a sua família, é inconcussa a coação moral irresistível. Se os males em jogo são cotejados, constata-se que o mal representado pelo ilícito (ofensa ao patrimônio alheio) é significativamente menor que o mal vaticinado pela ameaça (eliminação de vidas). Diversa seria a situação, porém, se o gerente de banco se assenhoreasse do dinheiro para não ter um caso de adultério revelado à esposa ou sua homossexualidade noticiada a terceiros. Em tal conjuntura, a pesagem dos males seria desfavorável ao gerente, que contaria unicamente em seu favor com uma circunstância de mitigação da sanctio juris. Desta sorte, para exemplificar, "não constitui coação irresistível a ameaça feita por agente coator a...

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