O exercício legítimo do ativismo judicial

AutorMílard Zhaf Alves Lehmkuhl
CargoAdvogado e professor de Direito Mestre em Ciência Jurídica
Páginas13-32

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Introdução

Em tempos atuais o Estado é visto como demo-crático de direito, o que representa um estado constitucional. Com essa roupagem a constituição, e nela os direitos fundamentais inseridos como seu núcleo axiológico, passa a ser o centro de validade formal e material do sistema, exigindo de todos os poderes do Estado um esforço e atuação para a proteção e efetivação destes direitos relacionados à dignidade do ser humano. Essa nova visão do Estado influencia diretamente a constituição e o direito, criando um cenário em que a atuação do Poder Judiciário na defesa e implementação dos direitos fundamentais ganha relevo. Esse alargamento da atividade estatal pela via judicial na tutela dos direitos fundamentais faz com o juiz deva adotar uma postura mais ativa, criativa, frente ao caso concreto, muitas vezes decidindo questões de ordem política que deveriam ter sido apreciadas (e não o foram ou foram com deficiência) pelo Poder Executivo e pelo Poder Legislativo. Em tempos de democracia constitucional todos os poderes devem agir na proteção e implementação dos direitos fundamentais, eis que estes são o centro de legitimação de todas as ações do Estado. Neste desiderato é que se desenvolveu a pesquisa para verificar se é possível o exercício legítimo do ativismo judicial pelo Poder Judiciário frente ao Estado contemporâneo. O método utilizado na fase de investigação foi o indutivo; na fase de tratamento dos dados foi o cartesiano e no presente relatório de pesquisa é empregada a base indutiva. Valeu-se o pesquisador das técnicas do referente, da categoria, dos conceitos operacionais, da pesquisa bibliográfica e do fichamento.

O ativismo judicial no Estado contemporâneo

Segundo Lenio Luiz Streck1, um dos temas de maior relevo da contemporaneidade por força da democracia constitucional2 tem sido a discussão sobre o papel (legítimo) a ser desempenhado pelo Poder Judiciário frente ao caráter normativo que foi atribuído na pós-modernidade3 à constituição4. Para o jurista:

“Parece não restar dúvida que as teorias materiais da Constituição reforçam a Constituição como norma (força normativa), ao evidenciarem o seu conteúdo compromissório a partir da concepção dos direitos fundamentais-sociais [hoje socioambientais] a serem concretizados, o que, a toda evidência – e não há como escapar desta discussão – traz à baila a questão da legitimidade do poder judiciário (ou da justiça constitucional) para, no limite, isto é, na inércia injustificável dos demais poderes, implementar essa visão.”

É do Poder Legislativo a obrigação de criar as regras do jogo de acordo com os interesses da maioria, respeitados os direitos das minorias, destinadas a guiar os rumos da sociedade civil5. É do Poder Executivo a obrigação de criar e adotar políticas públicas para resguardar e implementar os direitos fundamentais6, em especial aque-

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les destinados às minorias que não conseguem deles usufruir por seus próprios esforços e oportunidades.

Já do Poder Judiciário, em tempos de democracia constitucional, que atitude se deve esperar? A partir desta inquietação é que se passa a investigar e discorrer sobre a postura a ser adotada por este poder do Estado7 no paradigma trazido pela pós-modernidade (proteção e efetivação dos direitos fundamentais).

Para tanto, parte-se da ideia de que nos tempos atuais a realidade (no que se refere a direitos fundamentais) é de uma ineficácia das políticas públicas praticadas (ou não praticadas) pelo Poder Executivo, bem como da deficiente regulamentação (ou até mesmo ausência dela) das regras criadas pelo Poder Legislativo8.

“É nisto que reside o que se pode denominar de deslocamento do polo de tensão dos demais poderes em direção ao Judiciário. Ora, tal circunstância implica um novo olhar sobre o papel do direito – leia-se Constituição – no interior do Estado Democrático de Direito, que gera, para além dos tradicionais vínculos negativos (garantias contra a violação de direitos), obrigações positivas (direitos prestacionais). E isso não pode ser ignorado, porque é exatamente o cerne do novo constitucionalismo.”9

Desta premissa inicial (de ineficácia ou omissão do Executivo e do Legislativo em conseguir responder a todas as demandas sociais da pós-modernidade no que se refere aos direitos fundamentais) surge o problema a ser investigado e as suas possíveis hipóteses de resposta, a saber: o Poder Judiciário deve permanecer fiel “a concepção tradicional, tipicamente do século XIX, dos limites da função jurisdicional”, ou, este poder deve “elevar-se ao nível dos outros poderes” e, assim, tornar-se “capaz de controlar o legislador mastodonte e o leviatanesco administrador”?10

Em outras palavras, qual seria então o papel a ser adotado pelo Poder Judiciário frente ao estado democrático de direito11 e a democracia constitucional que dele resulta? Deveria ele manter-se inerte e demonstrar respeito aos dogmas do positivismo moderno num suposto respeito à separação dos poderes12 e, daí, à democracia, ou deveria ter uma postura mais proativa e buscar realizar a justiça frente a cada caso concreto, ainda que a questão debatida seja de conotação política (portanto pertencente inicialmente aos poderes Legislativo e Executivo)? Nesta hipótese, o que tornaria a sua ação legítima e não afrontadora da democracia?

Em decorrência do fenômeno neoconstitucional13 o Poder Judiciário ganhou maior campo de atenção e atuação na tomada de decisões de caráter político sobre os rumos da sociedade civil. Isso decorre da elevação dos direitos fundamentais ao status de princípios elementares (vinculantes) do ordenamento, inseridos no núcleo inviolável da constituição, fixados como o objeto de maior proteção do Estado contemporâneo.

A própria compreensão de democracia sofre uma reformulação em tempos pós-modernos, ampliando sua visão de respeito às regras do jogo (vinculação formal), para também compreender a necessária proteção aos direitos fundamentais das minorias (vinculação material). Esse novo olhar sobre a democracia, tida agora por constitucional, reflete diretamente na atuação do Poder Judiciário.

Nos principais ordenamentos jurídicos democráticos do mundo, desde o fim da segunda guerra mun-dial, houve uma maior atuação do Poder Judiciário nas questões políticas da sociedade civil, em consequência da busca dos cidadãos por respostas judiciais (de prestação ou proteção) em relação aos seus direitos elementares, aos direitos que lhes assegurem uma vida digna, com possibilidades de busca por um progresso existencial.

Essa amplitude do campo de atuação do Poder Judiciário em tempos pós-modernos resulta do movimento neoconstitucional e da sua nova visão sobre a democracia. Tem influência direta dos direitos fundamentais inseridos no núcleo valorativo do ordenamento e do modelo democrático constitucional adotado pelos Estados contemporâneos.

Os direitos fundamentais possuem uma bifrontalidade14 que os torna, além de direitos objetivos, em também direitos subjetivos e, como tal, justiciáveis15.

A justiciabilidade é a característica defluente da subjetividade dos direitos fundamentais, criada como ponto de equilíbrio entre os direitos humanos e monopólio de poder por parte do Estado. Ela surgiu como “moeda de troca” no momento de criação do contrato social quando o homem, para abrir mão de resolver seus problemas, cria o Estado e lhe atribui essa missão. Ganha o ser humano em contrapartida a possibilidade de sempre provocar judicialmente esse Estado para a tutela (proteção e implementação) desses direitos fundantes e legitimadores do sistema democrático, relacionados à dignidade da pessoa humana.

Os direitos fundamentais como direitos subjetivos traduzem-se em um estatuto jurídico político do cidadão, que lhe atribui possibilidades subjetivas de agir frente ao Estado. Logo, tratando-se de direitos fundamentais, o cidadão pode exigir seu respeito e proteção, sobretudo pleitear a realização das prestações neles contidas, inclusive pela via judicial.

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A judicialização16 dos direitos fundamentais (em decorrência da sua subjetividade e justiciabilidade) aumenta a quantidade de decisões que o Poder Judiciário passa a tomar em relação aos conflitos que ocorrem na vida em sociedade. Aumenta também a importância dessas decisões, pois envolvem os direitos fundamentais em suas múltiplas dimensões (direitos de liberdade civil e política, direitos sociais e direitos coletivos/ambientais).

Essa judicialização dos direitos fundamentais “envolve uma transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de participação da sociedade”17.

Para Luís Roberto Barroso, essa judicialização dos direitos fundamentais, a qual ele também denomina de judicialização da política18, tem como causa “a redemocratização do país, que teve como ponto culminante a promulgação da Constituição de 1988”; a “constitucionalização abrangente, que trouxe para a Constituição inúmeras matérias que antes eram deixadas para o processo político majoritário e para a legislação ordinária”; e o “sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, um dos mais abrangentes do mundo”19.

Dentre essas causas, cujo estudo individual demandaria um novo artigo, aquela a ser tomada por base para esta pesquisa (sem a intenção de desmerecer as demais e sequer com a pretensão de lhes negar validade) é a da “constitucionalização abrangente”, ou seja, a abertura constitucional promovida pelo neoconstitucionalismo e base-ada na principiologia dos direitos fundamentais.

A inserção dos direitos fundamentais na Constituição, na qualidade de princípios, e a sua composição como núcleo inviolável do ordenamento, centro de legitimação das ações do Estado, assim como a ineficácia do Executivo e do Legislativo em matéria de direitos fundamentais, são os referentes a serem adotados para a investigação...

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