Exegese sobre a “Relativização” da Coisa Julgada: O que há por trás dessa tendência?

AutorRafael José Nadim de Lazari; Gelson Amaro de Souza
Páginas197-214

Rafael José Nadim de Lazari. Discente em Direito pelas Faculdades Integradas “Antônio Eufrásio de Toledo” de Presidente Prudente/SP. Pesquisador do Grupo de Iniciação Científica “Novas Perspectivas no Processo de Conhecimento”, sob orientação do Prof. Dr. Gelson Amaro de Souza. Estagiário da Procuradoria da República em Presidente Prudente/SP.

Gelson Amaro de Souza. Procurador do Estado de São Paulo aposentado. Mestre em Direito pela ITE de BAURU/SP e Doutor em Direito das Relações Sociais - com área de concentração em Direito Processual Civil - pela PUC/SP. Integrado ao Corpo Docente do Mestrado em Direito e na Graduação em Direito da Faculdade do Norte do Paraná (UENP). Ex-diretor e atual Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da Toledo de Presidente Prudente/SP. Leciona também na graduação da FAI de Adamantina/SP, é Professor convidado da ESA/SP e da pós-graduação da FIO de Ourinhos/SP, ESUD de Cuiabá/MT e AEMS de Três Lagoas/MT. Advogado militante em Presidente Prudente/SP.

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1 Linhas preambulares

O homem é um ser altamente contraditório. Ao passo que perfilha-se a proposições benéficas que lhe são judicialmente reconhecidas, inclusive invocando-as e valendo-se de tais como “escudo protetor” ante a possibilidade de sua ofensa (como deve ser, na verdade); busca incansavelmente desconstituir o que lhe é desfavorável, mesmo que isso importe em negar o que outrora já foi absolutamente revestido de imutabilidade a bem de outrem.

Sem circunlóquios, é assim que funciona com a coisa julgada e sua relativização: após um dilatado período de batalhas nos tribunais, através das querelas judiciais e da “guerra de nervos” que apelações, agravos, embargos, etc., proporcionam; o “combatente” se vê diante de um pronunciamento judicial que encerra a lide e proclama a “paz entre as partes”. Todavia,Page 199 mesmo após o “fechar das cortinas”, mas antes ainda do “apagar das luzes”, há a possibilidade de “atos extras” que desconstituam a res judicata, quais sejam, a Ação Rescisória, nos termos dos arts. 485 e seguintes do Código de Processo Civil; a impugnação (ou embargos) sobre título judicial fundado em lei ou ato normativo declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo STF como incompatíveis com a Constituição Federal, com base no art. 475-L, §1º e art. 741, § único, da Lei Adjetiva; e a possibilidade de revisão da coisa julgada por denúncia de violação à Convenção Americana de Direitos Humanos formulado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos1; para que o vencedor possa enfim tranquilizar-se acerca da decisão proferida.

Então, suplantados todos os entreveros, quando menos se espera, acena-se pela possibilidade de injustiça ou inconstitucionalidade em um julgamento e surge a proposta de “relativizar” a coisa julgada por meios não convencionais, porém lícitos.

Quando se fala em decisão “inconstitucional”, parece clarividente que faz alusão àquela que fere os ditames da Lei Max Brasileira. Mas quando se fala em decisão injusta, o que seria ela afinal? Sintetizando e “Relativizando” uma definição – assim como se quer relativizar a coisa julgada -, uma decisão injusta seria aquela que não atende aos “meus” anseios, embora ela seja justa para “você” leitor, que propôs uma ação contra mim e obteve êxito.

Ademais, falar em “relativização da coisa julgada” remonta à nominação questionável, afinal, ou “é”, ou “não é” coisa julgada; e não “pode ser” coisa julgada2. Até mesmo porque, “relativizar” a coisa julgada é inviabilizar, de plano, a segurança jurídica que uma decisãoPage 200 imutável proporciona. Ao que parece, este “sopro processual nos ouvidos ansiosos por novidades” segue a moda de relativizar tudo, seguindo a ideia einsteniana de que tudo no mundo é relativo. Nem tudo é relativo, contudo.

É com base na questão envolvendo a segurança jurídica ao ordenamento material-processual, bem como atentando a uma suposta “mitigação” deste instituto, que este Ensaio quer se debruçar.

2 Da coisa julgada material e a questão envolvendo a segurança jurídica

Preceitua o art. 467 do Código de Processo Civil acerca da coisa julgada substancial, espécie de coisa julgada que nos interessa a bem da formulação deste Ensaio: “Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”.

Como bem se vê, trata-se da hipótese em que foi proferida nos autos decisão definitiva, nos termos do art. 269 do Diploma Processual, e contra este pronunciamento não mais cabe qualquer tipo de recurso que permita a manifestação da parte irresignada. Melhor explicando-a assevera CÂMARA:

Por tal motivo, as sentenças definitivas, as quais contêm resolução do objeto do processo [...], devem alcançar também a coisa julgada material (ou substancial). Este consiste na imutabilidade e indiscutibilidade do conteúdo (declaratório, constitutivo, condenatório) da sentença de mérito, e produz efeitos para fora do processo. Formada esta, não poderá a mesma matéria ser novamente discutida, em nenhum outro processo.3

“Imutabilidade” e “indiscutibilidade”. São estas as duas palavras-chave pelas quais tanto se almeja quando se ingressa numa peleja judicial, as quais estão contidas no universoPage 201 constitucional da chamada “segurança jurídica”, nobre axioma alçado à esfera de cláusula pétrea no trigésimo sexto inciso do artigo 5° da Constituição Federal, e que expressamente trata em seu terceiro item, da “coisa julgada”.4

Neste prumo, convêm a DIDIER JR., BRAGA e OLIVEIRA conciliar o instituto da Coisa Julgada com a questão envolvendo a segurança jurídica:

A coisa julgada é instituto jurídico que integra o conteúdo do direito fundamental à segurança jurídica, assegurado em todo Estado Democrático de Direito, encontrando consagração expressa, em nosso ordenamento, no art. 5°, XXXVI, CF. Garante ao jurisdicionado que a decisão final dada à sua demanda será definitiva, não podendo ser rediscutida, alterada ou desrespeitada – seja pelas partes, seja pelo próprio Poder Judiciário.5 (grifo nosso).

Entretanto, em que pese o status de “porto seguro” adquirido pela res judicata ao longo dos tempos, o que permitiu sua acoplagem ao Princípio da Segurança Jurídica num “casamento” perfeito; parece haver temerária tendência em desconsiderá-la como tal, em razão de possíveis decisões injustas ou inconstitucionais cristalizadas, o que teria colocado em xeque a soberania da coisa julgada.

Acerca deste processo de “desconsideração”, bem observou BAPTISTA DA SILVA:

Vivemos um tempo singular, que alguém qualificou de a “era da incerteza”. [...] As coisas que pareciam perenes, mesmo as coisas sagradas, ou aquelas tidas como naturais, como a família, acabam desfazendo-se ante a voracidade das transformações culturais. [...] Neste quadro natural, não deve surpreender que aPage 202 instituição da coisa julgada, tida como sagrada na “primeira modernidade”, entre em declínio.6

Em verdade, tal posicionamento tem se tornado crescente em razão de um “processo de esquecimento” acerca da real função da coisa julgada, qual seja, a de fornecedora de “garantia de segurança” e não de “justiça”, como idealizam os “relativizadores”. Neste diapasão, cabe a DIDIER JR., BRAGA e OLIVEIRA fazer tal distinção:

A coisa julgada não é instrumento de justiça, frise-se. Não assegura a justiça das decisões. É, isso sim, garantia da segurança, ao impor a definitividade da solução judicial acerca da situação jurídica que lhe foi submetida.7 (grifo nosso).

Sublinha-se na citação supra a assertiva de que “[...] a coisa julgada não assegura a justiça [...]”, mas sim “[...] a garantia da segurança das decisões”. Neste prumo, convém dissecar a frase para melhor entendê-la: com relação à primeira afirmativa, há que se considerar que o conceito de “Justiça” é demasiadamente complexo para uma definição final e objetiva. Há um pluralismo de fatores que a norteiam, mas de certa forma, todos eles estão ligados à questão da vulnerabilidade humana a possíveis falhas que possam transformar o justo em injusto num “piscar de olhos”8. Assim, às vezes, diante de um deslize do litigante em sua empreitada naPage 203 busca pela verdade, como a ausência de um documento ou a perda de um prazo, o Estado-Juiz profere decisão que não reflete o real direito daquele, mas mesmo assim esta decisão terá sido justa, vez que um pronunciamento final deve estar isento de benevolências ou malevolências quanto à falha que ensejou-o. Caso contrário, estar-se-ia manchando a imparcialidade do órgão julgador.

Da mesma maneira, a injustiça pode advir do outro lado. A título ilustrativo, a falibilidade pode se dar na figura de um médico que não consegue salvar seu paciente mesmo na mais corriqueira das cirurgias. Às vezes, pode se dar na pessoa de um alpinista que falha em sua empreitada ao cume de uma montanha. E como não podia deixar de ser, ela também pode se dar na figura de um magistrado que peca em sua decisão, proferindo-a contra a forma ou contra matéria dispositiva.

Em ambos os casos, em não sendo percebido o vício, o pronunciamento proferido pelo Juiz pode convalidar caso esgote-se a via recursal ou a via de ação (leia-se Ação Rescisória). Verifica-se assim, que mesmo uma sentença eivada de vícios pode fazer coisa julgada. Por isso diz-se que a coisa julgada não assegura a justiça.

Já com relação à segunda afirmativa, começa-se a explicá-la com um questionamento: afinal, o que a coisa julgada objetiva garantir então? Com efeito, a coisa julgada vem oferecer respaldo à segurança jurídica das partes, de maneira que visa evitar o desrespeito a um pronunciamento judicial. Assim, se o pronunciamento...

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