A execução trabalhista sob uma perspectiva humanista - o devido processo legal como resguardo em face dos atos da autoridade executiva

AutorTiago Muniz Cavalcanti
CargoProcurador do Trabalho. Mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP
Páginas237-256

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Introdução

O devido processo legal, como garantia fundamental balizadora da atuação judicial no processo, assegura às partes uma tutela justa e livre de arbitrariedades violadoras aos direitos personalíssimos das partes. Não obstante a destacada importância deste instrumento estruturante do processo, é forçoso reconhecer que o princípio em debate vem sendo constantemente afastado em detrimento de uma execução mais célere e efetiva.

Desde logo, é de bem exortar aos leitores que o vertente trabalho não tem por inalidade, jamais, subestimar ou desvalorizar a garantia constitucional da celeridade processual, cuja importância há muito já se encontra reforçada em instrumentos internacionais. Ao revés, pretende-se, aqui, enfatizar a necessidade de se harmonizar a rapidez da tutela jurisdicional com o respeito ao processo devido, livre de entrechoques ou atropelos a direitos fundamentais das partes. Em verdade, veremos que a ideia de uma justiça célere e efetiva integra o próprio conceito de devido processo legal, sob uma ótica material do acesso à justiça, corolário do princípio em comento.

O estudo se inicia com uma breve apresentação histórica do devido processo legal no direito anglo-saxão com o objetivo primário de alertar o leitor para a relevância do tema sob análise. Logo em seguida, serão apresentados os conceitos formal e material do princípio, sob a ótica da melhor doutrina, para, somente então, chegarmos à proposta central do presente trabalho: estudar o devido processo legal na execução trabalhista e suas peculiaridades.

Após, com o intuito de expor a desconstrução do processo devido em prol de uma execução mais célere, realizar-se-á a análise de caso concreto onde os atos executivos ofenderam direitos fundamentais sagrados de terceira pessoa, em grave afronta aos princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito.

Através de uma leitura da execução trabalhista sob um viés humanista, o presente estudo tem por objetivo primário, portanto, apresentar a problemática atual consubstanciada na busca incessante do encerramento da execução, a qualquer custo, apontando o devido processo legal como resguardo das partes em face de atos arbitrários da autoridade executiva.

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1. Bosquejo histórico: as origens do devido processo legal

Os séculos XI, XII e XIII viram transformações profundas na sociedade europeia: o comércio desenvolveu-se em todo o continente e em outras áreas do mundo ocidental; a economia local desenvolveu-se de uma agricultura de mera subsistência a um cultivo organizado da terra à manufatura; objetos, livros e outros produtos circulavam1.

As transformações sociais e econômicas ocorridas no renascimento cultural do inal da Idade Média produziram vários efeitos no mundo do direito, o que indou consolidado no texto conhecido como Magna Carta inglesa, documento de 1215, que teve por objetivo primário limitar o poder absoluto dos monarcas ingleses, reconhecendo garantias individuais às quais também se submetia o rei.

Os processualistas costumam remeter o surgimento do princípio do devido processo legal à Magna Carta, em especíico ao seu art. 392, que estabelecia procedimentos para o julgamento: segundo a Carta, o Rei deveria julgar os súditos conforme a lei, e não de acordo com a sua vontade. Como se vê, o due process of law construía desde aquela longínqua época os primeiros traços do Estado de Direito.

Após lenta evolução e adaptação ao contexto social circundante, o princípio do devido processo legal passou a ser incorporado aos textos constitucionais como garantia processual pessoal e coletiva nos mais diversos ramos do Direito.

No âmago do ordenamento jurídico brasileiro, o devido processo legal somente ganhou expressa previsão constitucional com o texto de 19883, que acolheu a tendência do direito constitucional comparado, especiicamente dos países ocidentais democráticos. Atualmente, a garantia do processo devido encontra previsão na Declaração Internacional dos Direitos Humanos de 19484 e na Convenção Interamericana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica5.

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2. A vertente formal do devido processo legal

Dentro do sistema principiológico de direitos fundamentais de natureza processual, o devido processo legal representa um princípio que assegura ao litigante a possibilidade de exercer os demais princípios-garantias correlacionados com o processo6, tais como a ampla defesa, o contraditório, o acesso à justiça e a legalidade do exercício da jurisdição. Não se trata, portanto, de um princípio inalístico, mas um veículo assegurador dos demais princípios vetores processuais.

De acordo com Alexandre Freitas Câmara, trata-se de um princípio que é, em verdade, causa de todos os demais. "Quer-se dizer, com o que acaba de ser airmado, que todos os outros princípios constitucionais do Direito Processual, como os da isonomia e do contraditório - para citar apenas dois -, são corolários do devido processo legal e estariam presentes no sistema positivo ainda que não tivessem sido incluídos expressamente no texto constitucional. A consagração da Lei Maior do princípio do devido processo legal é suiciente para que se tenha por assegurados todos os demais princípios constitucionais do Direito Processual..."7.

Em sua essência, o devido processo legal é um princípio-meio consa-grado na Constituição Federal para criar parâmetros jurídicos balizadores da atuação judicial na condução do processo, com vistas a assegurar a atuação autônoma e imparcial dos órgãos de jurisdição, assegurando aos litigantes um mínimo de igualdade de armas, cujo resultado prático realize justiça.

E a justa composição da lide, nos ensinamentos de Humberto Teodoro Júnior, só pode ser alcançada quando prestada a tutela jurisdicional dentro das normas processuais traçadas pelo Direito Processual Civil, das quais não é dado ao Estado declinar perante nenhuma causa8.

O renomado processualista também visualiza no devido processo legal um conjunto de princípios processuais através dos quais os litigantes se protegem de eventual violência na condução do processo. "É no conjunto

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dessas normas do direito processual que se consagram os princípios informativos que inspiram o processo moderno e que propiciam às partes a plena defesa de seus interesses e ao juiz os instrumentos necessários para a busca da verdade real, sem lesão dos direitos individuais dos litigantes."

Nessa esteira, a ideia de um processo devido caminha pela garantia às partes da faculdade do exercício de suas oportunidades processuais, mormente através da construção de uma decisão justa e democrática. É dizer, o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva exige que os procedimentos respeitem as garantias dos litigantes, estejam estruturados, e sejam aplicados a partir do contraditório construtivo do próprio provimento9.

Sob outra perspectiva, porém, bastante aproximada com vertente até então enfatizada, a doutrina costuma correlacionar o princípio do devido processo legal ao direito fundamental do acesso à justiça, sob todas as suas concepções.

A análise dessa ótica do devido processo legal se revela necessária por um motivo especial: como veremos a seguir, a duração razoável do processo deve ser considerada um importante pilar estruturante do devido processo legal. Isto porque a prestação jurisdicional deve ter um alcance satisfativo social no sentido cronológico, é dizer, a duração do processo de forma desarrazoável e tardia não conduz à prestação e uma ordem jurídica justa sob os pontos de vista social, material e moral, agredindo, portanto, o devido processo legal.

Ademais, neste ponto especíico, a evolução das relações jurídicas tem propiciado um constante distanciamento da concepção meramente formal de acesso à Justiça, no sentido de visualizar neste direito fundamental uma vertente material de acesso a uma ordem jurídica justa, é dizer, o direito de acesso à Justiça adequadamente organizada e formada por Juízes inseridos na realidade social e comprometidos com o objetivo de realização do valor justiça; o direito à preordenação dos instrumentos processuais capazes de promover a efetiva tutela de direitos; o direito à remoção de todos os obstáculos que se anteponham ao acesso efetivo à Justiça10.

Na busca do pleno acesso à ordem jurídica justa, relevante destacar o estudo sobre as denominadas ondas renovatórias de acesso à justiça, dos autores Mauro Cappelletti e Bryant Garth. Sobre o tema, até para não fugir do escopo precípuo do presente estudo, a análise das fases de desenvol-vimento do acesso à justiça far-se-á sinteticamente.

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A primeira onda diz respeito à assistência judiciária gratuita, destinada especialmente aos pobres e hipossuicientes. Neste momento, garante-se o acesso à justiça sob o prisma econômico, de modo a permitir o aparato estatal do Poder Judiciário àqueles que não dispõem de recursos para o pagamento das custas e contratação de advogados.

A segunda, por sua vez, relete o abandono da ideia meramente in-dividualista do processo, voltado para litígios privados entre particulares deinidos11. Criam-se, nesta fase, mecanismos viabilizadores da tutela de direitos difusos e coletivos, através de demandas judiciais capazes de envolver a coletividade ou parcela desta. Neste campo, o ordenamento jurídico brasileiro revela-se bastante evoluído, contando com diversos instrumentos aptos a proteger o interesse difuso e coletivo, como a ação civil pública, a ação...

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