Execução efetiva: fraude à execução trabalhista e fraude à execução fiscal - A interpretação sistemática como ponte hermenêutica à assimilação produtiva à execução trabalhista do regime jurídico especial da fraude à execução prevista no art. 185 do CNT

AutorBen-Hur Silveira Claus - Júlio César Bebber
CargoJuiz do Trabalho e Mestre em Direito. - Juiz do Trabalho e Doutor em Direito do Trabalho.
Páginas52-76

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As conclusões por analogia não têm apenas cabimento dentro do mesmo ramo do Direito, nem tão pouco dentro de cada Código, mas verificam-se também de um para outro Código e de um ramo do Direito para outro.

Karl Engisch

[...] o raciocínio jurídico será sempre analógico, por isso que as hipóteses singulares nunca serão entre si idênticas, mas apenas ‘ai ns na essência’.

Ovídio Baptista da Silva

1. Introdução

O Direito pressupõe a boa-fé das pessoas na vida de relação. É a boa-fé que fundamenta o princípio da responsabilidade patrimonial. De acordo com esse princípio, o patrimônio do contratante responde por suas obrigações: o patrimônio do sujeito obrigado é expropriado pelo Estado, para satisfazer coercitivamente a obrigação não adimplida espontaneamente, restabelecendo-se o equilíbrio da relação contratual e a integridade da ordem jurídica.

Esse princípio encontra expressão literal no art. 591 do CPC, preceito que estabelece que "o devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as restrições estabelecidas em lei". Trata-se de preceito localizado no título em que o Código de Processo Civil trata da execução forçada das obrigações não cumpridas espontaneamente. Na Lei n. 6.830/80, o princípio da responsabilidade patrimonial tem expressão nos arts. 10 e 30.

Para coarctar condutas de má-fé do devedor, a teoria jurídica extraiu do princípio de responsabilidade patrimonial dois institutos jurídicos destinados a combater fraude patrimonial praticada pelo sujeito passivo da obrigação - a fraude contra credores (CC, arts. 158 e 159) e a fraude à execução (CPC, art. 593). O fato de não haver processo contra o obrigado quando da alienação do bem re-vela que a fraude contra credores é ato ilícito menos grave do que o ato ilícito de fraude à execução1, modalidade de fraude patrimonial

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na qual já há processo contra o obrigado2 quando da alienação do bem que torna o obrigado insolvente para responder pela obrigação.

No presente artigo, estuda-se a juridicidade da aplicação do regime jurídico especial da fraude à execução i scal à execução trabalhista, com vistas a promover a efetividade da jurisdição na Justiça do Trabalho (CF, art. 5º,

XXXV; CLT, art. 765). Para tanto, articula-se a proposta de interpretação extensiva do art. 889 da CLT à interpretação sistemática do art. 186 do Código Tributário Nacional, com vistas à assimilação produtiva da modalidade de fraude à execução prevista no art. 185 do CTN à execução trabalhista, uma das diversas modalidades de fraude à execução previstas no direito positivo.

2. As modalidades de fraude à execução no direito positivo

Ao lado da modalidade geral de fraude à execução prevista no inciso II do art. 593 do CPC, o sistema legal prevê uma modalidade específica de fraude à execução no inciso I do art. 593 do CPC e abrange as demais modalidades de fraude à execução previstas em diversas leis na genérica hipótese do inciso III do art. 593 do CPC3 (inciso V do art. 792 do NCPC).

A fraude à execução prevista no inciso II do art. 593 do CPC tem sido considerada a modalidade geral de fraude à execução por se tratar do tipo de fraude à execução que ocorre com maior frequência. Caracteriza-se quando, ao tempo da alienação do bem, já corria demanda capaz de reduzir o demandado à insolvência.

Menos frequente é a modalidade de fraude à execução prevista no inciso I do art. 593 do CPC, que se caracteriza quando o devedor aliena determinado bem sobre o qual há ação judicial fundada em direito real. Essa modali-dade de fraude à execução decorre do direito de sequela próprio ao direito real. Nesse caso, a coni guração da fraude à execução independe do estado de insolvência do devedor.

Entretanto, as modalidades de fraude à execução são mais numerosas do que normalmente se percebe, sobretudo quando se atenta para as diversas modalidades de fraude à execução previstas em distintos diplomas legais. Nada obstante passem despercebidas algumas vezes, as demais modalidades de fraude à execução previstas em distintos diplomas legais foram consideradas pelo legislador na abrangente previsão do inciso III do art. 593 do CPC, preceito que faz remissão a outras modalidades de fraude à execução, assim consideradas aquelas previstas "nos demais casos expressos em lei".

Ao legislador é dado estabelecer, para a tutela do princípio da responsabilidade patrimonial, hipóteses outras em que a conduta do devedor caracterize fraude patrimonial a ser rejeitada pelo sistema normativo, tipificando novas modalidades de fraude à execução com o objetivo último de assegurar a integridade da ordem jurídica. Entre as demais modalidades de fraude à execução tipificadas em distintos diplomas legais, a teoria jurídica tem identificado - sem prejuízo de outras modalidades dessa espécie de ato ilícito4 - as seguintes hipóteses:

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a) há fraude à execução quando, na penhora de crédito, o terceiro deixa de depositar em juízo a importância por ele devida ao executado, nada obstante intimado pelo juízo para assim proceder (CPC, art. 672, §§ 2º e 3º5;

b) há fraude à execução quando há registro de averbação premonitória de existência de ação à época da alienação do bem (CPC, art. 615-A, § 3º6;

c) há fraude à execução quando o executado insolvente adquire bem residencial mais valioso, hipótese em que não poderá mais fazer prevalecer a alegação de impenhorabilidade de bem de família (Lei n. 8.009/1990, art. 4º, caput e § 1º7;

d) há fraude à execução fiscal quando o crédito tributário já se encontrava regular-mente inscrito como dívida ativa à época da alienação do bem pelo executado (CTN, art. 185, caput).8

Esse resumido inventário das modalidades de fraude à execução autoriza a conclusão de que o sistema legal inclui a fraude à execução i scal entre os casos de fraude à execução capitulados no inciso III do art. 593 do CPC, identificando na previsão do art. 185, caput, do CTN, particular modalidade de fraude à execução inserida pelo direito positivo entre os "demais casos expressos em lei"; modalidade de fraude à execução em que a presunção de fraude é considerada absoluta.

3. Fraude à execução fiscal: a presunção de fraude é absoluta; não se admite prova em contrário No debate que conduziu à edição da controvertida Súmula n 375 do STJ9, a doutrina e a jurisprudência desenvolveram rica controvérsia acerca da natureza jurídica da fraude à execução

De um lado, alinhou-se a corrente tradicional de opinião, sustentando que a fraude à execução continuava a caracterizar-se de forma objetiva (in re ipsa), exigindo apenas:

a) litispendência por ocasião da alienação do bem: demanda ajuizada em face do demandado à época do negócio fraudulento;

b) alienação essa capaz de reduzir o demandado à insolvência.

Para essa corrente de opinião, não se conhece do elemento subjetivo da boa-fé do terceiro adquirente na fraude à execução, ou seja, dispensa-se a prova acerca de consilium

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fraudis, requisito exigível apenas para a caracterização do ilícito civil de fraude contra credores (CC, arts. 158 e 159). No âmbito da teoria justrabalhista, essa corrente de opinião tem em Manoel Antonio Teixeira Filho um histórico representante10.

De outro lado, articulou-se o entendimento de que a fraude à execução somente coni gurar-se-ia na hipótese de estar caracterizada - ao lado dos demais elementos objetivos mencionados - a má-fé do terceiro adquirente, compreendida na ciência do terceiro adquirente quanto à existência da ação movida em face do executado-alienante; ou seja, o elemento subjetivo (má-fé do terceiro adquirente) teria passado a ser exigível para a caracterização de fraude à execução. Em outras palavras: o elemento subjetivo do consilium fraudis teria passado a integrar o suporte fático da fraude à execução, conforme indica o enunciado da Súmula n. 375 do STJ, in litteris: "O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova da má-fé do terceiro adquirente."

A jurisprudência trabalhista predominante assumiu essa posição sob inspiração da Súmula n. 375 do STJ, que passou a ser adotada por ocasião do julgamento de embargos de terceiro adquirente do bem.

Enquanto o primeiro entendimento faz resgate efetivo do compromisso da ordem jurídica com o princípio da responsabilidade patrimonial (CPC, art. 591) em detrimento da boa-fé do terceiro adquirente, o segundo entendimento tutela a boa-fé deste, privilegiando o interesse privado em detrimento do princípio da responsabilidade patrimonial.

A concepção...

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