Uma análise evolucionária da parturição e do desenvolvimento infantil em mamíferos

AutorRogério F. Guerra
Páginas396-439

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Introdução

Em várias* espécies de insetos, répteis e peixes, os animais só se reproduzem uma única vez na vida ( semelparidade ), e as fêmeas morrem logo após a oviposição; em mamíferos, os animais se acasalam várias vezes ao longo da vida ( iteroparidade ), mas as fêmeas igualmente vivem pouco tempo após a cessação da capacidade reprodutiva – notável exceção é o que ocorre com a espécie humana, em que as mulheres idosas auxiliam diretamente na criação dos netos e ultrapassam a longevidade masculina. O tamanho da prole pode ser analisado em termos longitudinais (i.e., número de gestações durante o período de vida) ou em função do número de filhotes produzidos a cada gestação; as fêmeas podem dar à luz apenas um filhote ( uniparidade ) ou pode ter múltiplos filhotes por gestação ( multiparidade ), tal como várias espécies de primatas ou roedores, respectivamente. Os dicionários da língua portuguesa e da inglesa descrevem as fêmeas multíparas como aquelas que dão à luz múltiplos filhotes ou fêmeas que já passaram por mais de uma parturição durante a vida. No primeiro caso, a palavra multípara está correta, pois se refere ao número de fetos produzidos; no segundo caso, a palavraPage 397que melhor designa as múltiplas parturições é iteroparidade , pois várias espécies produzem ninhadas, e as fêmeas se reproduzem várias vezes ao longo do período de vida (canídeos, felídeos e roedores).

O nascimento é visto como um marco delimitador, momento em que a criança ou o filhote animal ganha o status de ser completo ou “quase” completo. Entretanto, muitas evidências mostram que muitas espécies já apresentam razoável capacidade motora e cognitiva nos momentos finais da vida intra-uterina, principalmente em espécies precociais ou semiprecociais. Existem poucas descrições da interação mãefilhote nos primeiros momentos após o parto, devido às dificuldades metodológicas inerentes a este tipo de estudo. Comumente, a parturição é um evento rápido e discreto; quando estão prestes a dar à luz, as mães procuram um refúgio, e, na maioria das vezes, não há nada que sinalize algum acontecimento especial, o que sem dúvida alguma está relacionado com a minimização dos riscos de predação.

A parturição geralmente é um evento solitário, e as mães não exibem sinais de alguma dificuldade especial; as fêmeas mudam muito de posição, mas geralmente dão à luz agachadas, e não recebem ajuda dos outros indivíduos do grupo – elas mesmas puxam a placenta ou deixam-na cair quando se deslocam. Logo após o parto, as fêmeas limpam os filhotes e deixam o local onde ocorreu o parto – as lambidas removem pistas olfativas que atraem predadores, e o contato ventro-ventral permite o mútuo reconhecimento entre mãe e filhote, ao mesmo tempo em que ocorre a transferência de calor. Em primatas, os filhotes nascem cobertos com os restos da placenta, líquido amniótico e secreções vaginais da mãe; o contato físico com o filhote, a limpeza de seu corpo e o consumo dos produtos do parto proporcionam pistas olfativas e gustativas que permitem o rápido estabelecimento do vínculo parental. O parto é um evento discreto, e geralmente as mães não contam com a ajuda de outros indivíduos. Durante e após o nascimento dos filhotes, as mães exibem uma seqüência complexa de comportamentos e é necessário que elas “saibam” exatamente o que fazer neste momento; isto é muito interessante, se considerarmos que o parto envolve um breve espaço de tempo na vida dos animais e que muitas vezes as mães não tiveram oportunidade de “ensaiar” o comportamento.

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A parturição foi bem documentada em sagüis-de-tufo-branco ( Callithrix jacchus ). Estes animais são primatas de pequeno porte, nativos das Regiões Norte e Nordeste do Brasil e vivem em sistema familiar. Stevenson (1976) revelou que machos e fêmeas subadultas auxiliam as mães, principalmente no que diz respeito ao transporte e à limpeza corporal dos filhotes. Geralmente, as mães dão à luz dois filhotes a cada gestação e não exibem infanticídio seletivo quando nascem trigêmeos, mas o último filhote fica em nítida desvantagem em relação aos dois primeiros irmãos. Após a completa expulsão dos filhotes, eles escalam o corpo da mãe e se atracam fortemente à região ventral, iniciando a amamentação. Durante a amamentação, as mães inspecionam e limpam cuidadosamente os filhotes, e estes não interrompem a processo. Os contatos ventrais e o atracamento às mamas impedem que o último filhote venha a ter acesso a uma das mamas, permanecendo agarrado a uma das patas traseiras da mãe – em certas circunstâncias, o macho se aproxima e limpa o corpo do filhote, mas, após certo tempo, ele acaba caindo no solo e lá permanece até a chegada da morte.

Tais descrições revelam que as mães têm dificuldades em criar três filhotes simultaneamente; as mães não praticam infanticídio seletivo e tampouco consomem a carcaça de filhotes mortos, mas simplesmente negligenciam ou abandonam indivíduos fracos e debilitados. Em babuínos-amarelos ( Papio cynocephalus cynocephalus ), os membros do grupo exibem interesse pelo parto, mas as mães evitam a proximidade física e exibem vocalizações de medo quando um conspecífico se aproxima. Os partos também ocorrem à noite ou no final de tarde, no momento em que o grupo já se instalou em seu local de repouso noturno; num episódio descrito, o parto durou cerca de 45 minutos, a mãe limpou os filhotes, e ingeriu a placenta e o líquido amniótico (CONDIT e SMITH, 1994).

Os partos são difíceis de serem observados em marsupiais, pois os filhotes são diminutos em relação ao tamanho das mães, e estas não exibem sinais visíveis de gravidez. Os filhotes nascem imaturos, as mães dão à luz um ou até quatro filhotes; no momento do parto, elas se apóiam nas quatro patas e, logo em seguida, dobram o corpo de forma a facilitar o acesso dos filhotes à bolsa marsupial. Os filhotes “escalam” a superfície ventral da mãe, exibindo meneios da cabeça para os lados e movimentos coordenados das patas; as mães podem adotar diferentes posições durante o evento. O volume da placenta (menos de 100mg)Page 399e da ninhada é pequeno, de forma que a parturição dura de dois a quatro minutos (RENFREE e SHAW, 1996; GEMMELL et al., 2002). Os resultados da pesquisa básica revelam que o momento e os fatores que iniciam a parturição em animais e humanos são importantes, pois auxiliam na prevenção de nascimentos de bebês prematuros.

Partos em humanos

Algumas vezes jornais e TV exibem notícias sobre partos que ocorrem em condições precárias (dentro de táxis, ônibus ou em banheiros públicos, por exemplo); às vezes as mulheres dão à luz sem algum tipo de assistência, mas comumente elas contam com algum tipo de ajuda durante a parturição. Um caso interessante ocorrido em Moçambique, em março/2000, ilustra bem a importância do suporte emocional às gestantes. Com efeito, após uma terrível enchente, a grávida Sophia Pedro teve que, junto com a sogra, buscar abrigo nos galhos de uma árvore. A catástrofe ceifou a vida de 700 pessoas naquele país, mas, com o auxílio da sogra, Sophia teve o seu bebê em condições satisfatórias. Mãe e bebê sobreviveram quatro dias empoleirados na árvore; as imagens do resgate por helicóptero despertaram o interesse dos jornais e TV de vários países (ver ROSENBERG e TREVATHAN, 2001).

O episódio acima é bastante ilustrativo, mas nada se compara à dramática experiência vivida por uma mulher mexicana que, diante da falta de assistência médica, resolveu realizar uma cesariana nela própria. A mulher tinha 40 anos de idade e, uma vez que já havia perdido um bebê, devido às dificuldades do parto vaginal, ela decidira enfrentar o problema de outro modo. A experiência com abate de animais ajudou um pouco, mas a mulher teve que buscar coragem tomando três copos de um licor forte antes de realizar a “cirurgia”; ela seccionou o ventre com o auxílio de uma modesta faca de cozinha, e ambos, a mãe e o bebê (um menino), sobreviveram à terrível experiência. Antes de perder a consciência, ela solicitara a um dos filhos que fosse em busca de socorro; no hospital, os médicos conseguiram reparar os estragos causados pelos procedimentos adotados pela mãe (ver MOLINA-SOSA et al., 2004). O episódio causa espanto e revela a forte ligação da mãe com o bebê; por mais dramática que seja a experiência, os riscos seriam maiores, caso a mulher não tivesse tomado tal iniciativa.

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Relatos históricos e hagiográficos mencionam nascimentos de bebês, mas geralmente não descrevem detalhes dos eventos. Alguns episódios relacionados com a gravidez são descritos na Bíblia, mas nada se equipara em nível de detalhamento às descrições sobre a morte de Eudóxia (404 a.C.), esposa do imperador bizantino Arcadius. Eudóxia tivera problemas em dar à luz ao seu bebê e lutou com a morte por alguns dias; vários médicos foram convocados à corte, mas, após muito tempo gasto para que o bebê nascesse naturalmente, eles constaram que o bebê estava morto no ventre de Eudóxia. Os cronistas da época dão conta de que a desafortunada imperatriz tivera hemorragia abundante, sofrera de dores terríveis, vomitara abundantemente, os intestinos já não mais funcionavam, e isto impedia a defecação, a vagina...

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