Evolução legislativa das ações preferenciais no Brasil e os institutos a elas relacionados

AutorMarcel Gomes Bragança Retto
Páginas121-142

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1. O surgimento das ações preferenciais e sua evolução
A Conceito e origem

Ações de prioridade, ações privilegiadas ou ações preferenciais são denominações atribuídas às ações que conferem a seus possuidores certos direitos e vantagens não outorgadas a todos os acionistas.1 "Ora, em primeiro lugar" — diz Waldemar Ferreira — "as ações serão preferenciais relativamente às ações ordinárias. Preferência é o ato de preferir; c preferir é antepor, dar a primazia, o primeiro lugar; estimular mais, avantajar uma coisa de outra"2

Baseados no conceito estabelecido de ações de prioridade podem ser exemplificados os privilégios conferidos a essas ações. Pode-se conferir vantagens de ordem patrimonial nu política. Entre as vantagens de ordem patrimonial elencatn-se: prioridade na distribuição de dividendos; direito a um percentual maior nos dividendos; prioridade no reembolso do capital, e assim por diante. Entre as vantagens de ordem política, principalmente: privilegio de voto nas assembleias.3

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Quanto à denominação, como é cediço, no Brasil pacificou-se o uso das expressões ações ordinárias e ações preferenciais. As primeiras, conhecidas lambem como ações comuns, perante o direito brasileiro, conforme será visto, passaram a ser verdadeiras ações privilegiadas em relação aos direitos políticos.

Tratamento diverso é dado por cada ordenamento a essa espécie de ação. Uns conferem vantagens políticas às ações preferenciais, conferindo-lhes privilégio de voto. Outros restringem os privilégios a vantagens patrimoniais, retirando-lhes o direito de voto.

As ações privilegiadas foram introduzidas no ordenamento brasileiro pelo Decreto 2.536, de 15 de junho de 1932. Até então, do ponto de vista legal, só havia ações comuns (ordinárias).4 A despeito dis-so, nos dá conta Ernesto Leme que, mesmo sem disposição legal expressa, a doutrina majoritária já admitia a emissão dessas ações, conforme pareceres de Visconde de Ouro Preto e Rui Barbosa conferidos, respectivamente, aos 15 de dezembro de 1898 e de 7 de janeiro de 1899.5

A questão voltou a ser debatida quando a Caixa de Liquidação de São Paulo, no intuito de aumentar o capital que deveria ser integralmente tomado pelos credores, dirigiu consulta a Carvalho de Mendonça, Francisco Morato, Gama Cerqucira, Spencer Vampré6 e Waldemar Ferreira. Instaurada a discussão a respeito da legalidade ou não da emissão de ações preferenciais, saiu vencedor o entendimento que a admitia. Portanto, mesmo antes da promulgação do Decreto 21.536/1932 já havia o entendimento de que as ações preferenciais podiam ser emitidas, pois não contrariavam o Decreto 434, de 4 de julho de 1891.7 E, realmente, a prática já consagrara a emissão de ações preferenciais. Tanto procede a afirmação que o Decreto 21.536/1932, em seu art. 14, dispunha que: "As acções preferenciaes, emittidas antes do presente decreto, deverão conformar-se aos seus dispositivos, sem que estes, porém, as invalidem, nem as deliberações e os actos praticados na conformidade das leis que os regulavam".

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O art. 1-, § 1e, especificava as preferências a serem estabelecidas a favor dos acionistas. Consistiam elas em prioridade na distribuição dos dividendos, mesmo fixos e cumulativos; prioridade no reembolso do capital e prioridade na distribuição dos dividendos e no reembolso do capital. Permitia o Decreto, ainda, a criação de ações preferenciais de mais de uma classe. Podia-se, assim, estabelecer diversos privilégios. Exemplo: classe A, com prioridade na distribuição de dividendos. Classe B, eom prioridade no reembolso do capital, entre outros. O § 3° do Decreto permitia ao estatuto deixar de conferir às ações preferenciais algum ou alguns dos direitos reconhecidos às ações ordinárias, inclusive o de voto, ou de conferi-los com restrições. O § 4- vedava, expressamente, a adoção do voto plural. O art. 3° dispunha que o acionista titular de ação preferencial adquiriria o direito de voto sempre que, pelo prazo nos estatutos fixado e nunca superior a três anos, deixasse de ser pago o dividendo fixo, direito esse que seria conservado até que o dividendo fosse efctivãmente pago.

Com isso, como bem defendeu certa doutrina, deixaram de existir ações comuns. Todas eram privilegiadas. As ordinárias, pois foram transformadas em ações de comando, com privilégio de voto, já que os estatutos podiam privar as ações preferenciais desse direito. As preferenciais, pois gozavam de vantagens patrimoniais em relação às ordinárias.8

Cumpre ressaltar que o Decreto 21.536/1932 não limitou o total de ações preferenciais sem voto ou com voto restrito a ser emitido. Essa preocupação está presente no Decrelo-lei 2.627/1940, na Lei 6.404/1976 e na Lei 10.303/2001. Como leciona Miranda Valverde, a omissão do Decreto 21.536/1932 propiciou a constituição de algumas sociedades com o capital representado por 90% (noventa por cento) de ações preferenciais sem direito de voto, concentrando o poder nas mãos de poucos acionistas.9

B Direito de voto e ações preferenciais

A evolução das ações preferenciais sempre carregou consigo uma questão que até hoje agita o espírito dos doutos. Trata-se da questão do voto. Será ele um direito essencial do acionista? O absenteísmo que caracteriza as assembleias seria fator suficiente para suprimi-lo? Ou, ao contrário, acaba-se por estimular ainda mais o desinteresse do acionista? Transformou-se o titular de ações preferenciais em verdadeiro eredor? Essas são algumas questões que envolvem as preferenciais e sua sistemática e, por certo, não comportam respostas irrefutáveis e definitivas.

Mas é importante ressaltar que as companhias, em sua origem, eram marcadas por profundo carãter oligárquico. Nos dá conta Pontes de Miranda que o estatuto do Banco do Brasil, criado via alvará de 12 de outubro de 1808 pelo príncipe regente, concedia um voto a cada cinco ações.10 A assembleia, segundo o art. 9° dos estatutos, deveria ser composta pelos quarenta maiores capitalistas da companhia.11 E assim ocorria com as outras companhias em que a administração, geralmente nomeada pelo Estado, era preenchida por acionistas detentores de grande número de ações.12

A partir de 1789, os ideários da Revolução Francesa acabaram por influenciar a estrutura da sociedade anónima. A ideia de democratização do poder traz ínsita a influência da Revolução burguesa. Livrou-se o comércio das amarras de uma sociedade estratificada, entre clero e nobreza, com a

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ascensão de uma classe cujo único diferencial era o poder económico.13

Os debates cm assembleia restaram influenciados por esse ideário. O voto tomado cm assembleia não poderia consistir meramente na escolha de determinada alternativa. A deliberação era elemento intrínseco a esse processo.14 Daí a verdadeira aversão de parte da doutrina cm relação ao acordo de votos c ao voto porcorrespon-dência15 que, sob esse foco, transformam a assembleia em mero órgão alegórico, pois as decisões já são tomadas em momento anterior e eliminam a fase de deliberação.

O gigantismo da anónima e a dispersão da base acionária, contudo, justificam tanto o acordo de votos como o voto por correspondência. Quanto ao primeiro, faz com que haja constância do controle, eliminando as mazelas que uma alternância reiterada pode acarretar. Quanto ao segundo, democratiza a votação, fazendo com que acionistas que não possam comparecer e não queiram outorgar procuração para tanto, possam votar.

B 1 Direito de voto como direito não essencial

Perante o Decreto 434, de 1891, o voto era um direito estatutário."16 Dispunha o art. 141: "Nos estatutos se determinará a ordem que se há de guardar nas reuniões da assem-blca geral, o numero mínimo de acções, que é necessário aos accionistas para serem admittidos a votar cm assembléa geral, e o numero de votos que compete a cada um na razão do numero de acções que possuir".

O estatuto podia estabelecer o número mínimo de ações necessário para que o acionista pudesse votar. Podia o estatuto,

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também, limitar o número total de votos do acionista em assembleia. Ademais, o art. 132 dispunha que as deiiberações da assembleia geral seriam tomadas pela maioria dos sócios presentes e não das ações.17

O Decreto-lei 2.627/1940 agasalhou o Decreto 21.536/1932, com pequenas alterações. O art. 81 conferia ao estatuto a possibilidade de emissão de ações preferenciais sem voto ou com voto restrito. O direito de voto do titular de ações preferenciais continuava, aos olhos do Decreto-lei de 1940, a ser um direito passível de supressão via estatuto. Esse diploma inovou, entretanto, no que corresponde à amplitude da limitação que se conferia ao voto. Perante o Decreto 434, de 1891, como dito, podia o estatuto estabelecer o número mínimo de ações para que o acionista participasse da assembleia. Da mesma forma, podia limitar o máximo de votos do acionista, independentemente do número de ações de que fosse titular. O diploma de 1940, em seu art. 80, estabelecia que a cada ação comum (ordinária)...

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