A Evolução do Direito Penal Militar

AutorFrederico Magno de Melo Veras
Páginas25-37

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Onde quer que tenham existido exércitos na História, houve também um conjunto de normas às quais seus integrantes estavam sujeitos. Ainda quando não existiam exércitos regulares, ou seja, tropas permanentemente treinadas e reunidas para a guerra, havia deveres de cunho militar, relacionados à defesa de um Rei, da República, da cidade ou de um suserano.

Mesmo em sociedades primitivas, entendidas como as que possuem baixa produção de artefatos e limitados contatos com outras comunidades, verifica-se uma tendência para impor-se obrigações cujo conteúdo está preenchido com deveres relacionados à defesa da tribo ou aldeia. Tomese de exemplo o povo ianomâmi, o qual contava com dez mil componentes em 1962, portanto num passado recente, e que, vivendo na parte mais densa da Amazônia, próximo à cabeceira do rio Orenoco, na região de fronteira entre o Brasil e a Venezuela, possuía uma verdadeira tradição legal consistente num código de ferocidade (waiteri), que impunha deveres de dissuasão dos inimigos e de luta em caso

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de conflitos entre tribos15. Há quem fale até em um Direito Penal Militar Indígena16.

O estilo de vida guerreira e o código de ferocidade ianomâmis não estão muito distantes do modo de viver espartano. Em Esparta, todo homem deveria servir militarmente à polys, as crianças do sexo masculino eram segregadas da vida familiar ainda na infância e treinadas para as batalhas.

Roma17constituiu os primeiros exércitos regulares, sendo que os romanos que integravam as legiões estavam submetidos a duas legislações paralelas, uma enquanto civis, outra na qualidade de militares, sendo as infrações praticadas contra a última qualidade julgadas pelo cônsul militar. Era condição obrigatória para a posterior ascensão aos cargos públicos que os patrícios tivessem prestado serviços militares. No Brasil de hoje, cujo serviço militar é obrigatório e constitucionalmente previsto (art. 143), para assunção de

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qualquer cargo público, é necessário fazer a prova de estar quite com o serviço militar.

Na Idade Média, ocorreu um retrocesso no Direito Penal Militar, pois, com o poder central enfraquecido, sendo o rei o suserano dos suseranos, a servidão militar a um nobre poderoso ditava-se por regras assimétricas impostas por este chefe militar, com decréscimos de disciplina e uma enorme simplificação hierárquica, situação esta que só mudaria com o fortalecimento do poder real e o começo do Estado Absolutista.

Com o poder centralizado nas mãos do monarca, surgiram os exércitos nacionais, os quais resguardavam o poder real e, através das guerras, expandiam a sua esfera de infiuência. Os exércitos passam a ser instituições permanentes, aos quais foram impostos dois conjuntos legais paralelos. Expressando essa situação, dizia NAPOLEÃO que "o militar tem uma dupla característica: ele é cidadão e, como tal, sujeito ao império das normas comuns. Mas a pátria lhe dá uma função particular: ele é soldado, e daí nascer para ele deveres especiais regidos e protegidos pela lei especial do exército".

3.1. A Evolução do Direito Penal Militar em Portugal

Na primeira dinastia (1143-1383), foi formado o embrião do futuro exército português, estabelecendo-se uma obrigação de serviços de seis semanas, sendo que o soldo era pago apenas se tal tempo fosse excedido, verificando-se que, em sua origem, o serviço militar tinha natureza tributária. Naquela época, já existia uma justiça militar para o tempo de guerra, exercendo tal função o Alferes-Mor, que

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acumulava uma série de outras atribuições inerentes à condição de chefe militar18.

No século XIV, o poder jurisdicional para o julgamento de crimes militares esteve sempre a cargo de chefes militares nomeados pelo Rei, surgindo a Justiça Militar no Regimento do Condestável do Reino, a Justiça Militar no Regimento do Almirante e a Justiça Militar no Regimento do Marechal. As tropas militares, só mobilizadas em tempo de guerra, ao partirem para o campo de operações, levavam consigo um letrado para proceder à instrução criminal, um meirinho para efetuar as prisões e um carrasco para efetivar as penas aplicadas, todas elas constituídas em suplícios corporais ou morte.

Nos séculos XV e XVI, com o aumento do poder real, as tropas começam a ser regulares, com a necessidade de disciplinar-se os soldados e dar-lhes constante treinamento. Em 1446, com o surgimento das Ordenações Afonsinas, houve a previsão de diversas obrigações impostas aos soldados, os quais deviam trabalhar por "quatro cousas principaes: a 1a obediencia; a 2a soffrimento; a 3a esforço e a 4a boas armas"19.

Quando em vigor as Ordenações Filipinas (1603), é criado o Conselho de Guerra (Alvará de 22 de Dezembro de 1643), em decorrência direta da restauração da independência portuguesa (1640), recuperada da Espanha. Do Conselho de Guerra, participavam um juiz assessor, que devia pertencer ao quadro dos Desembargadores do Paço, e um promotor de justiça, sendo que o exercício das funções ju-

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diciais nas causas leves por este Conselho "era restrito aos dois conselheiros de guerra mais antigos" e, em casos mais graves, "era ainda incumbido aos mesmos, mais reforçados com dois juízes letrados"20.

Com as características próprias de um Código Penal militar, surge o Alvará de 20 de Fevereiro de 1708, no qual, apesar da mescla de ordens de cunho disciplinar, processual e de execução penal, existe a descrição de tipos penais, cuja esmagadora maioria são de crimes propriamente militares e até normas de justificação (por exemplo, os arts. 164.º, que fala em legitima causa e o 165.º que trata da legitima escusa). No alvará referido, faz-se a previsão de delitos que podem ser praticados por civis (e.g., o art. 218.º - prevê o crime de ajuda ao desertor), sendo que para esses tipos é comum a previsão da pena de multa. Também merece destaque a disposição do art. 223.º, que estabelece o pagamento de recompensa para quem denunciar um desertor, mantendo-se tal denunciação em segredo.

O Alvará de 18 de Fevereiro de 1763, o qual consagrou os famigerados artigos de guerra atribuídos ao Conde de Lippe, representou um avanço em termos de processo penal militar...

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