A evolução do conceito de soberania - tendências recentes

AutorCarla Amado Gomes
Páginas57-73

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  1. É frequente, nos dias de hoje, verse posta em causa a noção de soberania. Na Europa, a discussão tem subido de tom na proporção dos avanços no sentido da união política que desponta no seio da União Europeia, criação de contornos mal definidos pelo Tratado de Maastricht.1 Com efeito, a instituição de uma estrutura de contornos federais ou para-federais, que faria desaparecer a figura do Estado soberano, tão arduamente conquistada ao longo de lutas seculares, é uma perspectiva que muitos temem.

    No entanto, a controvérsia política e doutrinal que se vive na Europa em torno da questão da soberania, embora encontre na problemática da união política o seu terreno preferencial tem, não só causas mais prosaicas, como consequências bem mais abrangentes do que aquelas que se prendem como fenómeno de integração regional consubstanciado na Comunidade Europeia.

    Em primeiro lugar, relativamente às causas que começaram por abalar os alicerces da tradicional noção de soberania, cabe dizer que elas despontaram em meados deste século, na sequência de duas terríveis guerras que abalaram a Europa. A necessidade de reconstrução e o anseio do estabelecimento de condições para uma paz duradoura desencadearam uma nova concepção de relacionamento entre os Estados, que abandonaram o seu protecionismo económico e o seu orgulhoso individualismo político em prol de uma nova atitude de colaboração e entre-ajuda.

    A par dessas realidades, surgiram os movimentos de descolonização dos anos 60, concretizando o direito, solenemente firmado na Carta das Nações Unidas (artigos 1°, n. 2 e 559), à autodeterminação dos povos. Desta corrente emancipatória, surgiram vários novos Estados, os quais, se bem que juridicamente iguais aos seus pares na comunidade internacional, de facto careciam de condições - económicas e sociais - que lhes possibilitassem afirmar-se como efectivamente independentes. A

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    doutrina da Nova Ordem Económica Internacional traduziu estes desequilíbrios, que abalaram o segundo Dogma aliado à noção de soberania: a igualdade dos Estados.

    Ou seja, por outro lado, percebeu-se que a independência - a não subordinação do comportamento externo do Estado a factores exteriores, maxime, à autoridade de outro Estado ou sujeito de Direito Internacional - não só não é um valor a defender a outrance, como, e sobretudo, a man-ter-se com carácter de dogma inviabiliza a sobrevivência do Estado em termos económicos. Por outro lado, a sensibilização para a substituição da lógica egoísta do interesse nacional por uma valorização dos valores comunitários, nomeadamente da ideia de solidariedade entre Estados mais e menos desenvolvidos, leva a que o conceito da soberania mereça uma releitura, mais consentânea com as realidades.

    Em segundo lugar, relativamente às consequências da reponderação da noção de soberania, eles não se reflectem apenas ao nível regional, mas num plano mais vasto, de âmbito mundial. A consciencialização dos perigos de eclosão dos conflitos bélicos globais levou à exclusão do direito de fazer a guerra (ius belli) do âmago do conceito de soberania ao nível estatal. A interdependência económica conduziu à formação de blocos de comércio regionais, que actuam em frentes únicas no plano internacional. E a ideia de solidariedade entre Estados, que começou por revelar implicações meramente económicas, assume hoje repercussões jurídicas do mais elevado interesse, nomeadamente no que concerne ao problema da assistência a povos carenciados ou violentados nos seus direitos mais básicos, perante à impossibilidade - maxime, a recusa - de auxílio por parte do Estado onde se encontram. Estamos, é claro, a referir-nos à questão da ingerência humanitária, que vem vibrando fortes golpes no tradicional princípio da não intervenção nos assuntos internos dos Estados, reflexo clássico da sua soberania no plano externo.

    Estes resultados que hoje se obtêm - e que estão longe de ser um produto acabado -, longe de se apresentarem como desvio à lógica da soberania são, ao que pensamos, apenas uma confirmação das suas raízes. A clássica concepção da soberania como um poder ilimitado, que não reconhece superior na ordem interna e não se subordina a qualquer tipo de dependência no plano internacional, cujo berço se encontraria na obra de Bodin é, está hoje demonstrado, um claro equívoco histórico que importa sublinhar. Na sequência desse engano, cabe também desmistificar a soberania como um conceito quantitativo - como um conjunto de poderes de que o Estado seria titular -, indivisível e aliená-vel, para afirmar antes o seu carácter qualitativo e divisível, desde que preservado na sua essência.

    A reconstrução - rectius, a releitura - do conceito de soberania deve ser feita a partir dessa constatação. Vejamos porquê.

  2. É frequente localizar a data de nascimento do conceito de soberania na obra de Jean Bodin, Les six livres de Ia Republique (1576). Neste texto - que teve divulgação em duas línguas, francês e latim -, o autor utiliza, ora expressões tais como "souvraineté" e "majesté", ora as fórmulas de "summa potestas", "summum impe-rium" e, raras vezes, "suverenitas". Na versão latina, o autor escreve que & summa potestas não está limitada por nenhum poder superior: "é o poder mais alto sobre os indivíduos e não está sujeito às leis".

    A existência de duas versões, nem sempre coincidentes, aliada ao facto de viver uma época de crescente centralização do poder real, em França e no resto da Europa, propiciou a subversão da ideia de Bodin. Com efeito, das suas palavras não deve concluir-se que o soberano está acima de qualquer lei. Bodin distingue: o soberano está acima das leis particulares do país que governa, mas enquanto membro da comunidade geral da raça humana, está sujeito à lei divina e à lei das nações.

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    No âmbito desse direito da comunidade de nações, relevam os atributos de "summa potestas", que se traduzem no ius legationis (direito de enviar e receber delegações diplomáticas), no ius tractum (direito de celebrar tratados), no ius belli (direito de declarar a guerra e de fazer a paz), sendo o último o mais significativo ('Tun des plus grands points de Ia majesté").

    Segundo Bodin, a soberania deveria ser independente ("absoluta") sob dois aspectos: a independência perante os poderes internos residiria no facto de a regulação jurídica se tornar efectiva sem o consentimento dos súbditos ("sans leur consen-tement"), sobretudo sem a participação dos estamentos. A faculdade de regulação do soberano deveria também ser independente de poderes externos, mas com as limitações já apontadas.

    Só a utilidade política da obra de Bodin - enaltecendo o poder dos reis da França - e a repercussão de que gozou, podem explicar a sua - durante séculos - suposta originalidade. Com efeito, a soberania do plano interno foi logo pressentida por autores romanos, através da fórmula da absolutio legibus - a qual designava um poder absoluto de disciplinart juridicamente os comportamentos dos membros de uma comunidade. A contribuição de Bodin não foi aqui, por isso, original.

    Tão-pouco se pode ignorar a precedência da obra do grande filósofo e teórico medieval que foi São Tomás de Aquino. Este autor, que bem pode ser considerado um Humanista avant Ia lettre, retomou a filosofia aristotélica, e colocou o Homem no centro de seu sistema filosófico. Esta opção vai ter implicações ao nível do fortalecimento da então letárgica ideia de soberania, que se encontrava sufocada pela vocação para a unidade (de religião, de língua, de domínio, espiritual e temporal) que se viveu na Idade Média. Libertando o Homem da tutela omnipresente das duas autoridades máximas na Respublica Christiana - o Papa e o Imperador -, São Tomás abriu caminho a uma concepção individua-lista que se traduziu, ao nível dos principados, na afirmação da sua independência perante aquelas autoridades.

    Para São Tomás, os principados são parte integrante da comunidade universal da humanidade, subordinados a uma lei divina e uma lei natural, com as quais deve compatibilizar-se o direito legislado. Ressalvada essa subordinação, a civitas é uma entidade perfeita, criada por Deus. Tem plena autoridade para a realização da sua alta missão: assegurar o bem comum.

    A civitas correspondia à comunidade organizada, noção a que mais tarde a Vattel reconheceria capacidade de relacionação no plano internacional, como Estado dotado de uma personalidade jurídica diversa da do monarca. No seu aspecto externo, cada civitas é igual às outras, sendo, em princípio, independente de qualquer poder. Nos seus aspectos internos, São Tomás aponta como atributos principais da civitas o poder de legislar, de criar impostos para a realização do bem comum, de punir criminosos e declarar guerra. Por aqui se vê, também, que as considerações de Bodin relativas ao conjunto de poderes que compõem a soberania, em qualquer dos seus dois planos, nada trazem de verdadeiramente novo.

    Também Francisco Vitória, antes de Bodin, nas suas Relectiones de Indis, escreveu que não só os seres humanos, mas também as nações, estão unidas pelo direito natural. Esta afirmação tem consequências de vulto para a problemática da soberania, pois se um determinado conjunto humano, politicamente organizado, está sujeito ao Direito Natural, então a soberania não é ilimitada, mas, pela própria natureza das coisas, estará sujeita a limitações.

    Assim, e conforme nota, Truyol y Serra,2 a summa potestas nunca foi entendida como um poder ilimitado, seja por força da integração das várias comunidades políti-

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    cas no espaço europeu mais vasto da Cristandade, seja pela submissão do direito legislado a um Direito de ordem superior. Sendo natural que Bodin tivesse tido acesso aos escritos de São Tomás, e havendo passos da obra do primeiro que indiciam a não consideração da soberania como um poder absoluto, fácil se torna perceber o porquê do equívoco histórico que se gerou. A maximização da noção de soberania foi um fruto da crescente...

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