Evolução do conceito de ação e omissão

AutorRuy Celso Barbosa Florence
Ocupação do AutorMestre e Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Páginas25-92

Page 25

1. A evolução do conceito de ação
1. 1 Considerações iniciais

Na história do Direito penal, a ação humana aparece como um tema de amplo debate, na análise do fato jurídico-penal, diante da influência que exerce nos outros elementos, tais quais a tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade para a caracterização do fato como um delito.

Ao lado da palavra ação, há os que preferem outros significados para identificá-la, como por exemplo: conduta, comportamento, fato, fato punível e acontecimento.

No entanto, no campo da conceituação jurídica, divergem as opiniões doutrinárias, desde que Franz von Liszt e Ernest von Beling, por influência do positivismo naturalista, desenvolveram suas teorias a respeito do delito, abandonando, por não adaptação ao desenvolvimento dogmático, o então vigente conceito hegelia-no de ação, que tinha como inseparáveis o ilícito e a culpabilidade, constituindo ambos um todo. Esse conceito predominou até a década de oitenta do século XIX.

O maior impacto sofrido pelas teses de Franz von Liszt e Ernest von Beling com relação ao conceito de ação ocorreu a partir

Page 26

da publicação dos trabalhos de Hans Welzel em meados do século passado1.

Embora mais impactante, tanto em razão de sua ampla divulgação, como pela autoridade de seus primeiros e principais adeptos, a teoria de Hans Welzel sobre o conceito de ação não só não foi a única a questionar o sistema causal Liszt-Beling como sofre muitos questionamentos nos dias atuais.

Dos três grandes sistemas que se construíram em torno do tema, resistem vivas, ainda hoje, ideias procedentes de cada um deles.

1. 2 Conceito causal naturalista de ação

O conceito "clássico" de ação, de perspectiva naturalista-positivista, própria da "escola moderna" que influenciou o jurídico do século XIX, era descrito como um movimento corporal determinante de uma modificação do mundo exterior, com ligação causal à vontade do autor.

Essa concepção, definida por Hans-Heinrich Jescheck2 como estruturalmente simples, clara e didaticamente vantajosa, tinha, portanto, em sua base, a ação, em sentido estrito (movimento corporal), e o resultado (modificação no mundo exterior) unidos pelo vínculo da causalidade.

A ação, independentemente de qualquer análise valorativa ética ou consideração sobre suas implicações sociais, era considerada típica desde que encontrasse correspondência lógica em uma descrição legal de um crime.

O tipo, por sua vez, também se esgotava na descrição do fato, sendo valorativamente neutro diante do caráter formal que lhe era atribuído, desde Ernest von Beling.

Page 27

Tratava-se, assim, de uma tentativa de utilização fiel dos métodos próprios das ciências da natureza, em uma relação lógico-formal, na qual o trabalho mental para a tipificação consistia apenas em selecionar, por meio do processo indutivo, o dispositivo legal a ser aplicado à situação fática provocada por meio da ação.

Ainda sob a ótica objetiva, completando o processo causal externo, a ação típica era considerada ilícita caso não encontrasse no próprio sistema uma causa de justificação, cujo reconhecimento importasse na exclusão daquela aparente ilicitude.

Constatada a inexistência de qualquer excludente, estava completa a vertente objetiva do fato.

A concepção subjetiva da ação, relativa à vontade interna, não se confundia com o livre arbítrio, não importando, ainda, seu conteúdo, levado nessa teoria à categoria da culpabilidade. Acrescente-se que, nesse aspecto, o dolo e a culpa eram elementos da culpabilidade, dedutíveis por meio do nexo entre a ação e o resultado.

Assim, a ação típica e ilícita era considerada culpável quando fosse possível comprovar a ocorrência, entre o agente e o fato objetivo, de uma ligação psicológica, de dolo ou de culpa, finalizando nessa etapa todo o conceito causal da ação criminosa.

Essa visão clássica do delito foi produto da influência na ciência jurídica, da filosofia positivista-naturalista preponderante à época, baseada nas ideias de Augusto Comte, com o sociologismo, no evolucionismo de Charles Darwin e Herbert Spencer, e no naturalismo de Jakob Maleschott, Ludwig Búchner e Ernest Haeckel, determinantes do predomínio desses fundamentos filosóficos na dogmática penal, que acabou por abandonar o estudo do dever-ser idealista para se voltar ao estudo do ser3. O apogeu dessas ideias deu-se no final do século XIX e início do século XX, com reflexos até a 2- Guerra Mundial.

Page 28

Uma década antes de eclodir a 2â Grande Guerra, o conceito clássico de ação já havia recebido uma versão valorativa de cunho neokantiano4.

1. 3 Conceito causal - neokantiano de ação

Com a inclusão da ideia de valor na teoria do delito, com inspiração na filosofia neokantiana, abandonou-se o método científico-naturalístico de observar e descrever os fatos e, com outras ciências, então denominadas "ciências do espírito", passou-se à defesa da ciência do Direito, que nelas se incluía.

Essas "ciências do espírito" não mais se satisfaziam com a utilização de metodologias próprias das ciências da natureza, pois exigiam, além da simples observação e descrição, a valoração do sentido dos fatos e a sua compreensão.

A decorrente consequência para o conceito de ação foi de ele não mais poder descrevê-la e aceitá-la tal qual um fato naturalístico alheio ao valor. Ao contrário, a ação deveria submeter-se aos juízos de valoração, representados pelas categorias da antiju-ricidade e culpabilidade5.

Somente com essa visão causal neokantiana é que, conforme expressão utilizada por Edmund Mezger6, a ação é representada como comportamento humano, evoluindo em relação ao conceito de Ernest von Beling, de ser apenas um comportamento corporal voluntário.

Entretanto, mesmo com essa evolução, o conceito neokantiano de ação sofreu objeções, tanto por esvaziar o entendimento sobre a conduta delituosa, possibilitando iniciar-se a estrutura do delito a partir da tipicidade, como por não dar tratamento ao erro vencível de proibição nem conteúdo claro para a imprudência7.

Page 29

Por outro lado, é nesse contexto metodológico, de superação do naturalismo por um método com referência a valores, em que o tipo deixa de ser só causalidade, que se têm os primeiros acenos, a que se reconhecem hoje precursores da moderna teoria da imputação objetiva8.

1. 4 Conceito de ação na escola de Kiel

Por ocasião do domínio da Alemanha pelo movimento nacional-socialista, atingiu o seu ápice naquele país um movimento totalmente oposto ao conceito neokantiano de delito, conhecido por Escola de Kiel, cujos principais representantes foram Dahm e Shaffstein, defensores do que se conhece como Direito penal da vontade9.

Esse movimento realçou o aspecto ético-pessoal do ato ilícito, que deveria ser visto como expressão de um sentimento jurídico depravado ou do caráter de seu autor, fazendo supor a adoção de um Direito penal do autor diante do Direito penal do fato10. O delito não devia, pois, conceber-se lesão de um bem jurídico protegido, que considerava "um produto característico da ideologia do liberalismo clássico"11, que negava.

Na verdade, essa escola representou a tentativa de teorização de um Direito penal nacional-socialista de regime totalitário, com intenção de dar caráter científico ao direito positivo da ideologia política a que servia.

Para a visão nazista, o indivíduo amorfo, burguês e conservador, deveria ser superado pela compreensão orgânica da reali-

Page 30

dade12. O povo se forma como raça, e a nação alemã o povo da raça germânica.

A vida da comunidade não é limitada pelas leis, pois o direito está além das leis positivas, como expressão da...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT