Responsabilidade patrimonial dos sócios e dos eventuais ex-sócios pelas obrigações trabalhistas contraídas pela sociedade

AutorJosé Elias Alvarenga De Pádua
Páginas59-89

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1. Introdução

O entendimento na Justiça Especializada do Trabalho é uniforme:1 em contexto de execução frustrada contra a sociedade empregadora,2 os respectivos sócios e eventuais ex-sócios são inevitavelmente incluídos no pólo passivo da lide. Não se exige a prévia - e necessária - comprovação de fraude ou abuso da personalidade jurídica3 ou de ato ilícito praticado pelos membros de órgãos sociais, bastando apenas a inexistência ou insuficiência de bens da sociedade empregadora.

Esse peculiar entendimento, como se sabe, não encontra correspondência nas

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outras esferas do Poder Judiciário,4 para as quais é imprescindível a comprovação de fraude, abuso da personalidade jurídica ou outro vício societário5 para se desconsiderar a personalidade jurídica;6 ou a comprovação de ato ilícito praticado pelo membros dos órgãos sociais para responsabilizá-los pelas perdas e danos causados em nome da sociedade.

Com isso, é possível concluir que a responsabilidade limitada dos sócios e dos eventuais ex-sócios é considerada para todas as obrigações contraídas pela sociedade, à exceção das obrigações trabalhistas, pelas quais respondem os sócios e eventuais ex-sócios de forma subsidiária, porém solidária e ilimitadamente, independentemente do tipo societário da sociedade empregadora. Ou seja, a limitação da responsabilidade dos sócios é simplesmente ignorada em relação às obrigações trabalhistas.

Nesse contexto, desenvolveu-se o presente estudo com a proposta de identificar a hermenêutica utilizada pela Justiça Especializada do Trabalho para explicar o porquê de ser sempre ilimitada a responsabilidade dos sócios e dos eventuais ex-sócios quando as obrigações descumpridas pela sociedade forem de natureza trabalhista. Para tanto, foram apresentados breves comentários acerca do objeto deste estudo, conceituando "pessoas", "personalidade", apresentando os fundamentos da limitação da responsabilidade dos sócios e elencando as hipóteses de responsabiliza-ção de terceiros, sócios ou não, pelas obrigações contraídas pela sociedade. Em seguida buscou-se identificar e analisar os fundamentos mais freqüentemente utilizados pela jurisprudência e doutrina trabalhistas, contrapondo-os às maneiras legais de responsabilizar os sócios e eventuais ex-sócios, na tentativa de descobrir a origem do entendimento laboral e se essa origem constitui uma fonte válida do Direito.

2. Considerações preliminares
2. 1 Conceito de "pessoas" e de "personalidade"

Conforme Pontes de Miranda, "rigorosamente, só se devia tratar das pessoas depois de se tratar dos sujeitos de direito; porque ser pessoa é apenas ter a possibilidade de ser sujeito de direito" (Pontes de Miranda 2000:207). E continua: "O ser pessoa é fato jurídico: com o nascimento, o ser humano entra no mundo jurídico, como elemento do suporte fático em que o nascer é o núcleo" (Pontes de Miranda 2000:207). Assim, a personalidade vem a ser a mera possibilidade de se encaixar em suportes fáticos que se tornem fatos jurídicos - ou seja, a possibilidade de ser sujeito de direitos e, portanto, de ser pessoa. Para ser pessoa basta a possibilidade de ter um direito, qualquer que seja, porque "quem pode ter um direito é pessoa" (Pontes de Miranda 2000:207).

Através desse elaborado raciocínio desenvolvido no primeiro tomo do seu Tratado de Direito Privado, sucintamente apresentado no parágrafo anterior, Pontes de Miranda demonstra o óbvio: que "pessoa é titular do direito, o sujeito de direito. (...). Capacidade de direito e personalidade são o mesmo" (Pontes de Miranda 2000: 209).

Nessa concepção, a diferenciação entre pessoa física e jurídica resta inócua,

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pois ambas, tecnicamente, são pessoas jurídicas, por serem criações do Direito. Para fins didáticos é que se convencionou que "pessoa física ou natural é o ser humano. A pessoa que não corresponde tão-só a ser humano diz-se pessoa jurídica" (Pontes de Miranda 2000:209). Sobre a expressão "pessoa jurídica", prossegue Pontes de Miranda: "A expressão 'jurídica' está, aí, empregada em sentido estrito, porquanto pessoas físicas e pessoas jurídicas são igualmente jurídicas. Enquanto houve seres humanos que não tinham capacidade de direito, nem todo ser humano era pessoa. Então, artificial era o trato mesmo do ser humano, uma vez que se impunha distinção incompatível com os princípios mesmos que presidiram a formação do homo. (...). Não só o ente humano tem personalidade. Portanto não só ele é pessoa. Outras entidades podem ser sujeitos de direito; portanto, ser pessoa, ter personalidade. A tais entidades, para se não confundirem com as pessoas-homens, dá-se o nome de pessoas jurídicas, ou morais, ou fictícias, ou fingidas" (Pontes de Miranda 2000: 210).

Nota-se que a concepção de "pessoa" enquanto titular de direitos é, inclusive, objeto do primeiro artigo do Código Civil brasileiro,7 de modo que a doutrina de Pontes de Miranda acerca de pessoa e personalidade deve, indubitavelmente, orientar o desenvolvimento deste artigo.

2. 2 Fundamentos da responsabilidade limitada dos sócios

J. X. Carvalho de Mendonça, no início do século passado, já assegurava que: "A sociedade, animada, provida de economia especial, de patrimônio autônomo, destinado ao escopo comercial e vinculado à garantia dos seus credores, é distinta das pessoas dos sócios, tem vida independen-te; realiza função econômica diversa da dos sócios; é o verdadeiro titular dos direitos e obrigações provenientes do exercício da sua atividade" (Carvalho de Mendonça 2001:100).

Conforme se demonstrou, a sociedade, sendo sujeito de direitos e obrigações, é pessoa. Os respectivos sócios, titulares de direitos e obrigações distintos daqueles da sociedade, também são pessoas, naturalmente distintas da pessoa da sociedade empresária. Logo, cada qual tem direitos e obrigações distintos, conseqüentemente tendo cada qual a possibilidade de ter próprio patrimônio. O patrimônio da sociedade, portanto, não se confunde com o patrimônio dos sócios. Tanto que, "seja qual for o tipo da sociedade, o seu patrimônio responde ilimitadamente pelo seu passivo" (Requião 2003:382).

Enquanto titular de direitos e obrigações - ou seja, enquanto pessoa -, a sociedade surge como uma opção dos seus empreendedores, que poderiam eles mesmos exercer a empresa sozinhos, não o fazendo por preferirem se associar a outras pessoas e por "necessidade técnica da criação da pessoa jurídica, quando da elaboração de grandes empreendimentos, que necessitam de elevado investimento e da conjugação de esforços e recursos de inúmeras pessoas" (Grinover 2008:13). Dessa conveniência da criação de uma "pessoa jurídica" surgiu também a necessidade de limitar a responsabilidade dos sócios, pessoas distintas da sociedade, para o fim de incentivar os empreendimentos e desenvolver, com isso, a atividade econômica produtiva - em desestímulo à atividade econômica especulativa, que não distribui riqueza nem atende a interesses sociais.

Para esse efeito, existem positivadas no ordenamento jurídico brasileiro as sociedades limitadas e as sociedades anônimas, reservando o professor Osmar Brina Corrêa-Lima, por exemplo, o direito de questionar implicitamente o porquê da existência de outros tipos de sociedade, ao

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afirmar que: "A constituição de outras sociedades empresárias de tipos diferentes da sociedade por cotas, de responsabilidade limitada8 e da sociedade anônima parece refletir desconhecimento do direito empresarial" (Corrêa-Lima 2003:12).

Logo, a regra da limitação da responsabilidade dos sócios revela-se uma necessidade econômico-institucional, razão pela qual ao Estado é imposto o encargo de garanti-la e promover seu incentivo, tudo em prol da segurança jurídica e do desenvolvimento econômico produtivo do país. Conforme Nunes: "É preciso que se identifiquem os gargalos que impedem o crescimento da economia. Certamente dois deles são facilmente perceptíveis, a saber: a segurança jurídica e a incerteza para a realização do crédito. (...). Ao não se prestigiar a segurança jurídica fixada a partir da separação patrimonial, é inegável que se de-sestimula o investimento através de capital de risco, facilitando a concentração de crédito mediante modalidades tradicionais de financiamento, sabidamente mais custosas, tudo a revelar uma forma de concentração de riqueza não-produtiva" (Nunes 2007: 262-264).

Nota-se que a garantia à limitação da responsabilidade dos sócios, ao promover o desenvolvimento econômico produtivo nacional, contribui, inevitavelmente, para o aumento da média salarial e, sobretudo, para a geração de empregos, beneficiando diretamente os empregados enquanto classe. E, como se sabe, não se descobriu melhor forma de distribuir renda senão através do emprego, de modo que a limitação da responsabilidade dos sócios constitui garantia de interesse público e, também, coletivo (classe dos empregados e dos empresários).

Porém, não se pode olvidar que essa limitação da responsabilidade dos empreendedores possa vir a ser mal-utilizada, visando a fraudar...

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